Saltar para o conteúdo

General, A

(General, The, 1926)
8,6
Média
284 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

A locomotiva que atravessa o cinema

10,0

Quando Buster Keaton se apoia na grade que fica na ponta da frente de uma locomotiva em movimento, em A General (The General, 1926), reconheço essa imagem. Essa é uma imagem que está presente em livros de História do Cinema, documentários e clipes. É uma imagem que exemplifica o cinema mudo estadunidense, a obra de Buster Keaton e até a própria ideia de uma cronologia da disciplina histórica do cinema, como um modo de arte que teve, em algum momento, uma origem, uma infância e uma juventude.

Podemos olhar para A General dessa perspectiva histórica. Nesse sentido, o longa-metragem, sobre um engenheiro do Sul dos EUA que se envolve em uma grande aventura sobre os trilhos quando sua locomotiva é roubada pelo exército inimigo durante a Guerra Civil, é realmente um marco de sofisticação da construção de cena cinematográfica. Isso é mais notável por suas cenas de ação que reivindicam uma coreografia complexa de câmera, atores e montagem. Buster Keaton, que, além de protagonizar o filme, dirige esse trabalho em parceria com Clyde Bruckman, já era, quando a obra foi lançada, um mestre incontestável da comédia no cinema. E o senso de humor dos seus filmes sempre atravessou um impressionante trabalho coreográfico.

A graça de ver os personagens de Keaton em cena está relacionada, afinal, ao modo como o ator interage com o cenário e o espaço visual, o que levou a essa diversificação do enredo de seus filmes partir de lugares que poderiam servir como espaços cênicos interessantes para as coreografias do ator. Em O Navegador (The Navigator, 1924), por exemplo, esse espaço é uma embarcação em alto-mar. Em A General, esse espaço é uma locomotiva em movimento e, mais do que isso, é o caminho que essa locomotiva desenha por dentro da Guerra Civil estadunidense. O que nos leva a uma outra maneira de olhar para o filme.

Pode ser surpreendente perceber que A General, um dos maiores clássicos do gênero da comédia, é também um filme de guerra. Isso se dá não apenas no sentido de ele ser ambientado em uma, mas de ter colaborado ativamente com os códigos narrativos, formulações e técnicas do cinema de guerra como um gênero fílmico. As sequências mais cômicas de A General são, enfim, sequências de ação, como a cena em que Keaton prepara um canhão para atirar na locomotiva do exército yankee, mas a arma cede com o movimento e fica em posição de atirar contra o próprio Keaton, que tenta desesperadamente escapar desse alvo; ou a cena em que o engenheiro resgata sua amada em um saco de botas.

Não é surpreendente que possamos rir da Guerra, afinal, os filmes de Charles Chaplin já nos convidavam a rir da fome e de condições de extrema pobreza e precariedade - um riso que não zomba do personagem Carlitos, o ingênuo “vagabundo”, mas nos convida a um sentimento de solidariedade com ele e contra um sistema que o coloca naquelas condições. O que A General nos propõe, muito mais do que isso, é um filme de Guerra sobre o fracasso, sobre as armas que falham e sobre heróis improváveis. Ideologicamente, o longa parece tomar uma posição de superação da Guerra e apagamento dos problemas políticos que levaram a ela ao convocar uma leitura mais cômica do evento.

E é nesse ponto que, acredito, esconde-se a grande sacada da construção de cena de A General. O movimento da locomotiva revela, aqui, algo sobre a encenação do país pelo filme. O EUA, sobre os trilhos de Keaton, é um lugar que não conhece a fronteira entre um campo de Guerra e uma comunidade civil, ou o que separa a paisagem natural (sempre em cena, atravessada pelo trem) do território (da mesma maneira e ao mesmo momento, também em cena). O melhor do cinema clássico, do cânone, não são aqueles que nos entregam algo que podemos já prontamente nomear de “obra-prima” a partir de um roteiro pré-estabelecido para o que isso seria, e sim aqueles trabalhos que deixam vestígios para novos desenvolvimentos a cada revisão. E é neste ponto, no sentido pra mim mais interessante, que A General se revela, dos clássicos, um dos maiores.

Texto integrante do especial Baú dos Clássicos

Comentários (2)

João Pedro Duarte | segunda-feira, 18 de Maio de 2020 - 14:50

Excelente texto, Cesar. Filme atemporal!

Herbert Engels | segunda-feira, 28 de Setembro de 2020 - 18:11

É o Estrada da Fúria dos anos 1920 haha.

Como diabos Keaton conseguiu fazer esse filme sem morrer só Deus sabe.

Faça login para comentar.