A encenação de uma vingança nunca totalmente contemplada
O George Miller é um cara invocado. O truque dele é o cinema em sua forma imagética de absoluto impacto. E a saga Mad Max é o testamento desse aspecto do sujeito, e seja para acerto ou erros das fitas. Como por vezes uma simplicidade narrativa pode permitir/clamar um absurdo cinematográfico, assim como um trabalho ajambrado de qualquer jeito pode se fazer perder um impacto antes desejado. Furiosa: uma Saga Mad Max (Furiosa: a Mad Max Saga, 2024) entra no meio dessa putaria. Miller aqui quis fazer a sua versão de um spin off – entre vários outros tantos de diversas franquias – de sua criação, mas mesmo que se viesse a tratar de temas manjados como vingança e expiação, obviamente está dentro do esquema George Miller de se fazer cinema. O que é uma puta vantagem. Nessa toada o filme se agarra a esta escolha pela origem duma personagem conhecida para tratar de seu passado como algo que remeta um simbolismo daquilo que a tornaria lendária, enquanto como uma emissária da vingança, que serviria de base para uma revolução anarco-punk-apocalíptica anos a seguir. É uma opção narrativa que prima por um trabalho por sobre personagens que lhes tragam vulto e interesse dentro de um universo já estabelecido e acostumado com a ação desenfreada como função primordial. Talvez por isso exista o Praetorian Jack (Tom Burke) como espelho alusivo da representação do Max Rockatansky no imaginário coletivo, e assim ainda se fazer uma rima retroativa com Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), quando por lá Max acaba por se unir à Furiosa. E é dentro desse caráter dum absoluto representativo icônico, que os elementos da saga são tratados dentro do quimérico distópico que George Miller vai difundindo. A continuidade mitificadora, e aqui com a percepção de um passado a uma figura em locus histórico bem próprio.
E é desse histórico que a vemos sibilar.
A gestação da Furiosa tem a gênese da vingança a ela atrelada.
A abordagem de uma trajetória mais intimista.
Só o primeiro filme de 1979 seguia um caminho em similitude.
Furiosa aposta no conteúdo da tragédia continuada.
O azedume da vingança.
A justificativa existe.
A insanidade gananciosa está posta.
É uma fita moldada por estas características óbvias de materiais de eterno retorno da violência, mas que se alia às suas próprias idiossincrasias provenientes da franquia. O escalafobético desse universo escroto e como se dão as mais variadas relações que se justifiquem como tais na loucura. O diretor aposta nesse seu próprio domínio, onde concessões tradicionais narrativas não interessam tanto, já que o objetivo é mais agarrado ao tesão dado pelas imagens. Mesmo que aqui tente se ater mais ao caráter originário de Furiosa, e, como tal, investe-se mais em sua trajetória narrativa de criança raivosa e desmilinguida para uma adulta vingativa e poderosa. E como caminho tortuoso que é, Miller – mesmo mantendo a absurdidade de suas sequências sensacionais de ação -, mantém um tom abaixo de Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), porque aqui o objetivo não é somente o espetáculo grandiloquente, mas a formação de uma criatura mítica. E para isso se aposta nesse caráter intimista a perseguir essa personagem sorumbática. Que tem em sua face e ações mais a expressar do que por suas palavras. Miller gosta desta proporção distorcida entre protagonista e antagonista, onde o primeiro (no caso, primeira) é figura calcada no silêncio e nas ações e o segundo pelos discursos compridos, de sentidos dúbios, mas viscerais. E é aí que mora o acerto de meter Anya Taylor-Joy para protagonizar o material. A atriz tem uma profunda expressão em seus olhos, que a faz conseguir se comunicar por vezes somente com eles. O silêncio do crescimento da vingança misturado com a luta por permanência em vida. Em contrapartida, o Dementus de Chris Hemsworth já é funcional não só como contraponto à Furiosa, mas como representante mais disparatado em estrago do mundo Mad Max. Ultrapassando limites impostos até por outros personagens anteriores. Ele impõe sua vontade em prol do poder e colhe um declínio vultuoso de grandes intensidades por sua culpa. Na verdade, um psicopata divertido e fanfarrão que abusa do exagero de tom em ações – e atuação de Hemsworth –, mas que segue ainda dentro da coerência proposta. É fascinante a imposição ao descomedimento desta saga, na qual tanto em linguajar quanto em visual, se cria um entendimento muito claro da existência clara de uma identidade muito própria. Algo que cria bases muitos sólidas para a construção do todo. E esse é um puta legado.
E a vingança?
Envenenada?
E a guerra?
É estupenda?
Immortan Joe?
Dementus?
A prioridade da vingança inicial, por um período, é mantida como plano subsequente diante da sobrevivência e possível fuga dessa mulher daquele espaço. O lance é que a criação mítica de Furiosa vai convergindo em meio ao mais absoluto caos de ações externas responsáveis por causarem uma guerra entre facções por sob as lideranças de Dementus versus Immortan Joe (Lachy Hulme). É um artifício esperto de Miller manter o equilíbrio entre macro e micro-história, onde somos condicionados a observar sim uma guerra a acontecer e como suas lideranças vão reagir a ela, enquanto temos uma perspectiva interna da Furiosa que está no olho do furação dessa peleja. E esta eterna volta dela ao caos é a construção tanto do mito quanto de sua futura libertação revolucionária. Por mais que esta sujeita, em determinado momento tente se desvencilhar dos grilhões que a acorrentam, alguma questão aparece e a traz de volta à prisão. Quiçá por isso tenha-se havido a escolha de um romance em meio ao caos entre Furiosa e Praetorian Jack. Algo não tão usual na cinessérie – mesmo soando como aleatório em seu trânsito entre ação e reação dos personagens dentro do filme. Mas a intenção se compreende, porque já que Miller ensaiou uma rota de fuga para Furiosa necessitar-se-ia de uma motivação extra para o vingancismo da própria retornar tenazmente. E a fita vai se moldando nesse vai e vem de caos e intenções de Furiosa. Um preparo para sua transformação final.
E a ação afinal?
Brutal?
Sensorial?
A porra que tanto interessa.
Como artificie que é, Miller compromete-se sim em deter-se com putas sequências insanas de ação projetadamente sensoriais (ele já assim o fazia, mas aqui a característica da particularidade intimista está justaposta) para este material, e como tais possuem suas engrenagens muito bem azeitadas na construção de ameaças e localização dos personagens nos espaços e em como eles lidam com os objetos a sua volta enquanto um ambiente estupendo os cerca. O caos em meio a beleza do deserto. O que é não absolutamente novo, mas ainda causa tensão pela forma acelerada e bem concatenada na beira do genial com que Miller as apresenta. A mistura dos mais variados elementos imagéticos é vinculada à resgates históricos muito próprios, que tensionam e engrandecem as proposições atreladas à ação. Como Dementus como uma figura por sobre bigas modernosas, trocando as anteriores da antiguidade por motos envenenadas, numa afetação de liderança doentia dessa criatura apontando para combates épicos comprometidos com uma relação distante entre o apocalipse e conflitos romanos, por exemplo. O épico como movimento, algo feito de maneira diversa em Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015) quando há aquele imenso caminhão de som com um guitarrista, a servir como um arauto prenunciador dum exército poderoso. Aqui a questão é figurada diretamente no abuso frontal de Dementus. É uma ação que se reconhece como grandiosa e que se agarra a aspectos de história ocidentais e assim os distorce para criar uma outra via, fomentando assim uma peculiaridade eficiente de identidade. O diretor sabe muito bem como fomentar os objetivos de cada ação e como estas seguem o fio narrativo proposto para serem funcionais [espetaculares/catárticas ou digressivas/catárticas ao espetáculo maior – as intimistas/catárticas]. E dentro do crescimento do conflito ainda há a delimitação da especificidade idiossincrática do caminho de Furiosa. O pau comendo na guerra, mas o conflito final que interessa é a vingança propriamente dita. Um caminho interior fora traçado até ali, não há fuga para esta mulher. Nunca houve. Sempre carregada para a miséria, mesmo quando num breve momento buscou até um bálsamo. Mas isto não lhes é dado. O poder não assim permite. Cabe a ela então rever o conceito desse alívio por enquanto e partir para a vingança frontal finalmente, que é um troço que já estávamos esperando.
E a supracitada vingança intimista?
É contemplada?
Enquanto furiosa se transforma raspando a cabeça e pondo uma prótese num braço, a guerra vai transcorrendo e agora a mulher não mais é porra nenhuma além do ódio. De sua mãe executada ao novo amor torturado e morto. A vontade pelo citado ódio é quase uma transubstanciação inequívoca do mastigar de seu braço ferido. Como se fosse um presságio do descalabro. O sacrifício de mais uma parte sua (já haviam sido muitas) para que o encaminhamento final fosse dado. A carne sendo estraçalhada. A fatalidade da carne. O alimento agora é só a vingança pura, suja obviamente, mas tensionada por uma pureza que sobrara, já sem esperança (mesmo que o resgate desta venha no filme subsequente). E é aqui que a fita vai em cima mais ainda de um visual a mudar a intencionalidade do tom de forma mais incisiva (do épico para o intimista) – e que é uma transposição tão gostosa de se contemplar que poderia ter sido mais comprida, e dentro dos acertos de Miller com preparo continuado para este findar, o mesmo não se dispõe de tempo o suficiente, não de maturação, mas de catarse, mesmo que em sua estrutura haja um ponto muito esperto a se salutar. O conflito entre Dementus e seu algoz Furiosa é formatado mediante um isolacionismo direto entre ambos e duma espera por parte do público por um destroçamento. Dementus não dá isso a Furiosa. Uma alma como a dele, tão avacalhada por aquele torto feudo apocalíptico que se insere, que sua hipótese por arrependimento nem existe. Furiosa em desgraça degenerada enxerga que sua vingança não vai ser contemplada da forma como queria. Não há alegria minimamente plena em Mad Max. O mundo é uma destruição em forma de furacão apocalíptico que não dá espaços a bálsamos sem um preço alto a se pagar. Por isso a morte não é punição. É redenção diante de trajetórias em eterna calamidade. A ideia é joia, e Miller se utiliza dela para propor não um fim, mas uma continuidade torturante a Dementus já que poucas coisas são piores do que estarem vivos naquele espaço. Inclusive a dor duma esperança vingativa.
Ótimo texto. Ted ta levando o site nas costas. Não achei o filme tão bom assim não.
Ele tá mesmo!!!!
Valeu galera. Estou na área. Se derrubar é pênalti. Eu gostei dessa pegada um pouco mais intimista e por vezes introspectiva - e encaixando com a ação exagerada, ainda que não tente ser agigantada demais. Traz interesse. E o contraste grosseiro de Furiosa com Dementus é funcional e divertido. Com um quê interessante de anarquia.