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Críticas

Cineplayers

Injustiçado na época de seu lançamento, respeitado depois. Um filme impactante sobre a Segunda Guerra.

8,0

De um amável diretor das comédias caipiras, Kon Ichikawa tornou-se, nos anos 60, sinônimo de escândalo no Japão ao fazer três filmes que entraram para a história do cinema. O primeiro, o belíssimo A Harpa da Birmânia (leia a crítica aqui no Cine Players), com sua visão zen e pacifista da guerra, deu-lhe projeção internacional e vários prêmios, mas seus filmes seguintes seriam uma pancada no público e polêmica na certa. Em Estranha Obsessão, um velho senil tenta recuperar sua antiga força sexual usando da pedofilia e necrofilia entre outras tentações. Essa obra deixou estarrecida a platéia japonesa, que esperava do diretor mais uma comédia leve e singela que ele tanto dirigiu (mais de 50) durante toda a carreira precedente.

Mas nada causaria mais impacto do que Fogos na Planície, um escândalo digno do feito por Nagisa Oshima fez em O Império dos Sentidos. Ao retornar ao tema da participação japonesa na Segunda Guerra Mundial, Ichikawa e sua esposa, a roteirista Natto Wada, fizeram não um filme de guerra, mas de horror, surrealista por vezes pelo extremo das imagens, num dos mais crus e densos retratos de uma guerra já filmados.

Conta a história do soldado raso Tamura que, uma vez saído do hospital para tratar da tuberculose, retorna ao batalhão de origem, mas é mandado de volta pelo comandante pelo simples motivo de que não havia comida suficiente para ele – aliás, as porções que haviam não davam nem mesmo para os que lá estavam. Assim, Tamura caminha sem rumo pela Filipinas, um país desconhecido da qual não falava a língua, em busca de algo que, sinceramente, ele não sabia. No bolso, ele leva uma granada, para algum momento de desespero de um provável suicídio.

Ao chegar ao hospital, este estava sendo atacado. Os funcionários fogem e deixam lá um grupo de enfermos famintos que, para tentar salvar a vida, arrastam-se pelo campo de batalha, tornando-se vítimas fáceis do inimigo. Alguns soldados, esfomeados, em vez de fugirem como os funcionários, entram no hospital para tentar recuperar as reservas de alimento e acabam explodindo com elas.

A precariedade das tropas japonesas na Segunda Guerra foi filmada recentemente no belo Cartas de Iowa Jima, de Clint Eastwood, filme que não existiria se não houvesse antes este Nobi, de Ichikawa. As trincheiras eram cavadas com baldes e bacias furados, os soldados marchavam de um campo de batalha ao outro como sonâmbulos, sem reação aos ataques, e, uma vez que caíam por terra, não tinham forças para levantar. Por que ainda assim os Estados Unidos jogaram em Hiroshima e Nagasaki as duas bombas nucleares é uma questão que só a ganância, a cobiça, a cegueira do poder e a paranóia comunista podem explicar.

Ichikawa alterna cenas ternas e longas discussões entre os soldados japoneses com as cenas de humilhação e degenerescência. Usou uma metáfora genial: a cor branca como prenúncio da desgraça. Segundo o soldado, a fumaça branca indica a presença do inimigo. Logo depois viria a fumaça preta da destruição. Assim, o diretor usa a cor branca, que para os japoneses significa a morte, como porta de entrada para o terror, que chega em preto. Ichikawa só tinha duas cores (o filme é em preto e branco), mas bastam nas mãos do esteta. É assim desde o início, com os letreiros brancos entre os troncos negros das árvores, até o final, com a fumaça preta dos aviões americanos metralhando todos de cima.

Conhecido como o Frank Capra do Japão até os anos 40, o animador que considerava Walt Disney e Pier Paolo Pasolini suas maiores influências (e ele não estava mentindo) agora empilha cadáveres que as aves de rapina devoram. Sobreviventes espantam os corvos para vasculhar os bolsos dos mortos em busca de algumas migalhas de arroz.

Ichikawa foi muito questionado se não teria passado dos limites, uma vez que o filme tem cenas de canibalismo – a origem da história é uma autobiografia de Shoei Ooka e os fatos são reais. O crítico japonês Tadao Sato disse que os excessos visuais são uma forma de Ichikawa esconder sua falta de consistência intelectual, como se pode ler no excelente artigo que acompanha a edição da Criterion Collection para o filme. Pauline Kael o defendeu, dizendo que o filme tem uma lucidez desarmante – para ela, este um dos melhores filmes já feitos em toda a história.

Ichikawa fez Fogos na Planície logo após o julgamento do Japão pelo tribunal internacional, de onde o país saiu com a pior condenação, no mesmo nível dos nazistas: os oficiais japoneses induziram o canibalismo entre as tropas, também havia campos de concentração com direito a escravidão sexual e vários tipos de mutilação, preparadas com requintes de masoquismo, que arruinaram mais de 100 mil prisioneiros de guerra do Japão. Não teria como ser diferente uma abordagem do assunto.

Em várias entrevistas, o cineasta pediu para que não julgassem o filme com a moral cristã ocidental, pois estaria assim fora do contexto. Mas o julgamento foi sumário: ficou para a história com um dos mais mal vistos do autores japoneses, o menos apreciado da Nouvelle Vague japonesa, especialmente depois do ácido documentário que ele fez sobre a Olimpíada de Tóquio, em 1964, considerado anti-patriótico. Foi sendo recuperado aos poucos, com parte da crítica a favor e com o sucesso dos seus sucessores no Japão, entre eles o mais famoso, Shoei Inamura, duas vezes vencedor em Cannes, mostrando que a má fama foi precipitada e injusta.

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