O terceiro filme de Cláudio Assis - sucedendo os tão aclamados quanto criticados Amarelo Manga (idem, 2002) e Baixio das Bestas (idem, 2007) - mostra que o diretor pernambucano não arrefeceu nem um pouco em seu radicalismo formal nem em suas temáticas sempre controversas: as histórias sobre indivíduos da classe baixa da sociedade pernambucana retratam um universo todo próprio e característico, onde assuntos como sexo, desejo, repressão e exploração são explorados constantemente sob uma ótica sempre distante e desconfortável, nunca cômoda ou resignada.
Febre do Rato abre com o ponto de vista de um barco se aproximando do litoral recifense. Vemos a cidade surgindo aos poucos, enquanto ouvimos uma voz declamando poesias. A imagem, que se assemelha com a primeira imagem registrada no Brasil – o ponto de vista de um barco chegando na Baía de Guanabara, filmado por Afonso Segreto – cumpre a mesma função que o registro centenário: irá, em preto e branco, descortinar um mundo muitas vezes ignorado e desconhecido, e a voz declamadora logo se revelará ser de Zizo, um poeta que edita um jornal independente homônimo ao filme, feito à mão, na raça e na coragem pelo próprio através da sua máquina de imprensa e sua fotocopiadora que distribui aos berros e protestos pela sua cidade.
Com Zizo compartilham espaço outros personagens de seu círculo social, pessoas que bebem, fazem sexo, traem, brigam e novamente se unem em uma espécie de união miserável em contraponto à angústia solitária, engolida em seco, de Amarelo Manga ou o desfile de perversões e personagens disfuncionais de Baixio das Bestas; para um artista que aposta no que incomoda, Febre do Rato funciona não apenas como filme, mas também como afirmação de estilo: como nas suas ácidas e críticas entrevistas, seu filme também é uma antítese de um cinema limpo, educado e cartesiano demais; seu grande espaço tempo diegético, a pouca presença de ação dramática, os diálogos com o ritmo de uma conversa cotidiana são racionalmente distante da pathos do cinema tradicional para justamente aproximar espectador do íntimo dos personagens: a nudez, a masturbação, o sexo, o sono, a ressaca pedem mais por instante e menos por pose.
A fotografia de Walter Carvalho, como sempre acontece em tantos outros trabalhos seus, constrói um olhar carnal sobre os personagens enfocados, revelando sua sensualidade, sua feiúra, seus pequenos instantes, enfim; sua liberdade enquanto ser humano, quando ninguém mais está olhando.
Essa obsessão formal-temática de Cláudio é descrita perfeitamente pelo título do filme, expressão usada para se conotar algo fora de controle; Zizo é um dos seus personagens-síntese; o poeta interpretado por Irandhir Santos, apaixonado por uma menina de dezoito anos, famoso por transar com mulheres muito mais velhas, escritor de poemas que nenhum dos seus amigos entende intelectualmente - mas que só pelo sentimento que o mesmo põe, já se sentem emocionados -, agitador cultural entre outras atividades que lhe dão na telha, ele é aquele velho personagem tão anárquico que mal sabe o que quer, que quer destruir a ordem estabelecida, encarnar tudo o que seja chamado de perversão, uma verdadeira febre de inventar, de ousar, de desobedecer, e enfim, viver. As câmeras, em zenital, em tripé ou na mão, capturando pessoas de costas, pela metade, enquadradas em angulações e alturas estranhas, deslocando o olhar (e logo a percepção) do espectador do horizonte normal, são o eco estético dessa dramaturgia fragmentada e indefinida por definição.
Energia vital tão grande que, no final das contas, lhe custará caro. Assim como o próprio diretor é constantemente “vítima” de críticas detratoras que partem de pontos de partida conservadores, o mesmo acontecerá com Zizo, que acabará tendo seu delírio dionísico posto em conflito com a rigidez do couro e do pano pesado, dos cabelos geometricamente cortados e as penianas armas de metal que tomam as últimas seqüências do filme – truculentas demais para a carne e poesia do agitador.
O desejo reprimido e a exploração do corpo que tomaram seus dois últimos filmes mostravam como o Brasil ainda é um país de interiores, com medo de sair e olhar em volta, resquícios da ameaça da mentalidade conservadora e ditatorial que o Brasil ainda luta para se recuperar. E Zizo é um desses mártires enlouquecidos que irá se rebelar contra qualquer forma de ordem pré-estabelecida, mesmo que lhe custe a vida. Você não põe a coleira em uma aberração – a convicção de Cláudio Assis, amante da percepção aberrante, que mais uma vez produz outra obra diferente de quase tudo que se faz no Brasil hoje em dia. Articulado como poucos se permitem ser, enfurecido como raros têm coragem de ser.
Gosto dele,tem um exagero interessante.
Agora estou na dúvida. Quem deve ser escolhido pra representar a gente no Oscar 2013? "Febre do Rato" ou "Histórias que só existem quando lembradas"? Porque sinceramente foram as melhores coisas que o País produziu até agora no ano.
Cláudio Assis estará em minha cidade amanhã e assistiremos o filme em nossa I Mostra de Cinema. 😁 😋 😁
#não estou tirando sarro, apenas manifestando minha alegria.
Filmes de Cláudio Assis mostram a realidade nua e crua. Interessante.