O Trem. O trem. O incômodo desse trem. O trem é som, é imagem. É estrago sonoro e espacial. E é dele que vem a madeira das construções dos barracos. Esse veículo enorme e barulhento propõe uma urgência diante da situação de luta dos personagens contra a especulação portuária que os expulsa. É a evacuação promovida pelo capital, que se ajunta à exposição de corpos excluídos. A passagem ruidosa do supracitado trem invoca o poder dos abastados. Daqueles que com tamanho financeiro e político visam estraçalhar outros que querem sobreviver em território já negociado. Tirar na marra (à fórceps) um grupo que habita, nas condições que lhes imputam, uma paragem agora comprada. Negociada [negociata]. E a movimentação desse trem rima transversalmente com a correria em agonia da figura Rosa Luz. A opressão do trem contra a rebeldia desesperada por sobrevivência. Favela da Prainha, Guarujá. Complexo do Porto de Santos. Cidade de Santos. Hibridismo do realismo ficcional com o documentário das cabeças falantes. O TREM. Confusão da esperança e da demolição dos barracos. "A pobreza veio do começo do mundo"(?)
A expulsão de Rosa Luz. A desordem. Chutada de casa. Pela sexualidade. E assim vai lutar pra construir um barraco para si enquanto a derrubada dos barracos está a chegar. "A gente é pobre. A gente tem que se unir. O que tem a ver que eu tenho peito e pau?" As saídas de casa no cedo, na pré-adolescência. A prostituição de uns/umas. A desarrumação entre o retrato mais fiel (dentro do possível) de um realismo documental e da ficção realista. Nada é mais escroto que a realidade (e desarranjada como tal). Uma vez disse o saudoso – de legado eterno – José Mojica Marins [Zé do Caixão] ao depor no filme Horror Palace Hotel (Horror Palace Hotel, 1978), de Jairo Ferreira: “O horror não está no horror, mas é horroroso.” Se a realidade desse horror, horrorosa é, estamos diante dum material que versa sobre o horror do real. Enquanto se digladia entre a desconsolação ficcional com as revoltas de uma realidade retratada. O TREM. O horror. O filme perambula sobre estas esferas de versões do real, documentais e ficcionais, apostando nessa conurbação como um percurso a se seguir, onde a repetição de planos vira quase uma maçaroca de maneirismos da direção e que funcionam exatamente pelo caráter sub-reptício de suas aparições. O TREM. Existe uma percepção do que é ficcional realista e no documental do real, mas há momentos de junção em que a personagem Rosa Luz – a aderência ao ficcional, não sem pertencer a um visceral real – lida com personagens outros com discursos onde a ficção se subverte no citado realismo documental e, assim, se cria uma confusão deliciosamente amarga. O TREM.
A passagem dos planos buscando aqui e ali impor o entrechoque do front e a profundidade de campo onde os barracos periféricos se aglutinam na mesma imagem que gigantescos navios e o complexo portuário ao fundo. A resistência teimosa ao poderio feroz do capital. Este último age pelas desventuras, rigores e arrepios dos esquemas das leis, e leis que são propiciadas para o sabujo dos privilégios da burguesia. Quando um discurso muito repetido fica, ele vira rótulo e até por vezes uma caricatura, mas nem por isso deixa de ter um braço fincado tenazmente no real. Burguesia. Leis. Capital. O TREM. São caminhos tortuosos, zuadentos e sujos. Pessoas correm. Areia sobe. Os trilhos estremecem. A grandeza de um navio a esmagar as figuras numa humilde barcaça. A ida deles num buraco sob a entrada de Santos, que pode remeter à entrada de escravos através de Santos (algo que é da opinião da própria atriz Rosa Luz, há de se ressaltar). O buraco que representa uma sub-existência mantida e promovida por status quo no qual interessa sua exata manutenção membranosamente continuada. É um perpassar de comando monstruosamente a amassar (e executar) quem fique em seu caminho. E é nesta confusão programadamente cacofônica, que a fita sobrevive, dando vasão a seu ímpeto na base do estampido. Da gritaria. As pessoas urram em raiva e desesperança, mas nada é mais ruidoso que o estremecer inicial dos trilhos seguido pela passagem de um monstro de metal imenso que buzina de forma estrondosa sua existência.
O veículo gigante é mostrado farta e longamente. O poder exaltado e sublinhado. O capital. Um personagem é visto picotado, em correria. O desespero exaltado e sublinhado. Casas são condenadas – O TREM ESTÁ PASSANDO –; o povo grita – O TREM ESTÁ PASSANDO –; o pobre afirma sustentar o rico – O TREM ESTÁ PASSANDO –; uma figura desesperada e revoltada, luta e resiste contra uma sistemática escrota de estraçalho – O TREM CONTINUA PASSANDO. O confronto entre o personagem trem e os personagens humanos não é diálogo, não é conversa, é esmagamento. O aparecer da máquina é pela convulsão social. As migalhas roubadas do trilho para a construção dos barracos é a retroalimentação de controle do capital (com o estado como fiador) e o que sobra para a população. Sobras, inclusive, que podem ser retiradas ao bel prazer dos poderes estabelecidos. Uma relação doentia e ultra repetitiva. O TREM. "Quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro". O TREM. "Os milhão passam por dentro do quadrado”. O TREM. “A gente não sabe o que tem dentro”. DO TREM. “Os milhão passam tudo por aqui”. DENTRO DO TREM. “E nós fica como?” FORA DO TREM. “Na mesma" NÃO NA MESMA DO TREM, QUE PASSA. "Nós somos só a visão da passagem." O TREM CONTINUARÁ A PASSAR.
Bravo! Sua crítica está magnífica! Você conseguiu capturar e transmitir toda a relevância do filme de uma maneira que ressoa profundamente com a forma como ele foi apresentado.
Agradeço pela leitura Rose. A intenção era passar uma inflexão acerca do que eu percebi dentro da exibição do material. O que ele desenrolara em termos de linguagem e impacto. Nisso ele é ótimo.