Agatha Christie é uma das grandes autoras do século XX, com um estilo absolutamente único. Porém, podemos contar nos dedos grandes adaptações de seu trabalho - ou, ao menos as que contam com aclamação praticamente universal. Com alguma tranquilidade, dá para dizer que Testemunha de Acusação (Witness for the Prosecution, 1957), de Billy Wilder, é o trabalho que se encaixam essa categoria. Ainda assim, em seu estilo mais clássico com detetives como Hercule Poirot e Miss Marple resolvendo crimes da alta roda em um misto de investigação procedural e farsa bem-humorada, rareiam os exemplos. Entra em cena Rian Johnson e seu Entre Facas e Segredos (Knives Out, 2019).
Ironicamente, talvez uma piada ao gosto da Rainha do Crime, Entre Facas e Segredos não é uma adaptação de Johnson do trabalho de Christie, mas sim uma rendição tributária a todos os clichês, maneirismos e senso de humor da autora inglesa - mas com uma abordagem pessoal do diretor surgido no mercado com Looper - Assassinos do Futuro e catapultado para o mainstream com Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi (Star Wars: The Last Jedi, 2017).
Talvez a farsa mais deliciosa de 2019, Johnson mostra como compreendeu profundamente a homenageada ao contar a história de como após uma festa especialmente conflituosa o escritor de suspense Harlan Trombley (Christopher Plummer) aparece morto no quarto de sua mansão. Todos parecem culpados e com motivos para assassinar o magnata, do genro que trai a esposa (Don Johnson) ao neto playboy (Chris Evans) passando pela ex-nora aproveitadora (Toni Colette). Contratado por uma fonte anônima para resolver o mistério, o excêntrico detetive particular Benoit Blanc (Daniel Craig), que observa com seu imenso poder analítico o desmonte daquela estrutura familiar.
A única pessoa que parece mais inocente ali é a enfermeira Marta Cabrera (Ana de Armas), que vive tendo sua nacionalidade latina confundida pela família que alterna entre o paternalismo daqueles com maior culpa social aos abertamente intolerantes. E sim, Entre Facas e Segredos como farsa faz seu papel de sátira social. Talvez daí tenha vindo a necessidade de escalar um elenco estelar: no livro "Fazendo Filmes", Sidney Lumet explicou que grande parte do atrativo de seu Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 1974) são personas famosas fazendo tipos conhecidos.
Aqui a mesma coisa, mas atualizada: Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Katherine Langford, Plummer, Colette e Evans em retratos caricaturais tiram sarro da sociedade norte-americana em uma casca de noz - da esquerda cirandeira à direita tuiteira, ninguém é poupado, pois todos se revelam mesquinhos e egoístas à medida que a trama se desdobra. Em fortes cores, do rosa-choque ao verde-limão, Entre Facas e Segredos é uma caricatura berrante dos tipos que vemos em tintas mais ou menos reais todos os dias.
Mas é claro que Johnson em seu projeto de paixão (que teve a ideia desde que terminou seu debute, o neo-noir A Ponta de Um Crime, em 2005) não apenas se esconderia atrás do estilo, e seu filme também brinca não apenas com o mistério de quem matou, mas também com o suspense, de como aconteceu. Logo de início, vemos que a enfermeira Marta injetou uma dose letal de morfina em seu patrão. Isso parece resolver o mistério, mas Johnson faz questão de resolver isso ao contrário de como Christie escrevia seus mistérios: se foi assim que aconteceu, como isso irá se resolver? Isso logo se revela um delicioso exercício de cortina de fumaça, onde, justamente, em dado contexto, uma família aparentemente civilizada está pronta para se trucidar.
Quer dizer, há de se observar que o conteúdo temático dos filmes, mesmo em filmes para fruição de entretenimento, está fortemente político nos dias de hoje. Há de se pensar que a extrema polarização nos afeta em vários níveis, e não estamos falando apenas de movimentos e manifestos nas ruas, mas também atrás das portas, com as relações de poder que se desenham oferecendo farto repertório a ser observado pelos gêneros; e aqui, como em Christie, a clássica figura do suspeito de assassinato assume contornos sociais que expõem à luz todas as pequenas hipocrisias e agressões cotidianas, e cada casa de família ganha o aspecto de uma hostil savana social.
Contribuiu para isso Johnson no ápice de sua concepção formal enquanto encenador. Sua maneira de enquadrar aquelas figuras desde o início, iluminando aquelas figuras coloridas com fortes luzes que captam suas imperfeições contrastam com o jeito soturno de Blanc, que apesar dos gracejos não se poupa nas perguntas mas economiza nas conclusões a´te o momento propício. Seja em supercâmera lentas hiperdramáticas, contraluzes imponentese até mesmo um momento criativo onde representa a perda de estabilidade da família com literalmente a câmera deixando a segurança de seu tripé de suporte para, balançante, se meter no meio da ação e viver naquela fervura por alguns minutos, Entre Facas e Segredos é um circo onde cada pequeno elemento disponível é pego, utilizado e amplificado.
Com isso, o filme em questão apresenta algumas das mais criativas, elaboradas e narrativamente funcionais set-pieces de 2019; onde muitas das cenas são meticulosamente pensadas para obter o máximo efeito dramático e abusa até mesmo com certa mão pesada de sua proposta inicial; fica a critério do espectador até onde a overdose de gritos, cores e reviravoltas é aceitável a seu gosto, mas para os que não se incomodam com exagero estético, Entre Facas e Segredos surge como uma deliciosa fanfarronice que não tem pena de rir de uma sociedade abjeta e egoísta e em última instância ridícula; restam para o questionamento a bem-intencionada porém em certo nível culpada protagonista e o detetive excêntrico e estranho a qualquer atmosfera. Fica desde já como uma tour-de-force criativa que se paga de maneira irreverente e ácida desde o primeiro segundo.
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