Ação maniqueísta embalsamada num discurso sociopolítico grosseiro
Material do sul-africano Neil Blomkamp, que envereda novamente pela ficção científica e seus percalços distópicos. O filme trata da história de Max (Matt Damon), que ao sofrer um acidente químico onde trabalha, lhes é dado o prognóstico de 5 dias de vida. A partir disso ele se envolve com Spider (Wagner Moura interpretando um traficante de humanos) que o contrata para um serviço de risco para, assim, ir a Elysium, local onde vivem as altas castas sociais que abandonaram a Terra e usam esta última como curral humano de trabalho forçado. Em Elysium não é permitida a entrada de pessoas de castas inferiores – aí entra a questão do tráfico humano –, e é por lá que se possui uma tecnologia médica que possibilita a cura das mazelas físicas de Max, o que justifica o seu desespero ao aceitar a missão. Mas ele descobre que seu serviço pode ser a chave para o fim da grave dicotomia social primitiva existente.
A grosseria dentro duma sujeira caracterizada por Blomkamp cria um clima doentio e formidável onde suas temáticas violentas mostram-se extremamente salutares, como já acontecera em seu filme anterior Distrito 9 (District 9, 2009). A capacidade para a disparidade nas relações é tangível e propositadamente bruta. Com direito a até um nojo físico por parte dos moradores da própria Elysium, como se estivessem lidando com leprosos. A direção visa a construção duma ambiência sempre dando a visão de seus personagens, desnudando e não enaltecendo seus extremamente competentes efeitos visuais onde o deslumbre é pelo contexto físico e social. Pode parecer paradoxal isso porque o longa se destina demais às grandes cenas de ação, mas com a mesma sujeira e falta de glamour deste universo, a contextualização distópica metafórica é um dos grandes lances do filme. Porém as tais cenas de ação são bem executadas onde a montagem, juntamente com a fotografia, presta um decente papel na inteligibilidade das mesmas.
O roteiro, do próprio diretor, tanto debate o esquema dicotômico de castas sociais quanto a resolução maniqueísta da trama. Ao discutir a tal dicotomia o faz de maneira seca, concisa e coerente, buscando expor conflitos étnicos imbuídos de relevância tal, diante da drástica situação em que estes vários grupos se encontram, onde até o uso de um elenco tão cosmopolita, cultural e etnicamente, corrobora com estas intenções.
Blomkamp não é um cara de sutilezas. Trata de maneira dura as questões da luta de castas onde um ponto (dentre alguns) interessante é ressaltado: a questão idiomática. A divisão de castas. Onde na Terra – suja e com cara dum ferro velho gigantesco – se fala o Inglês habitual com presença doutros como espanhol e português, numa alusão aos questionamentos acerca da problemática da imigração de estrangeiros ilegais nos Estados Unidos. Então grosso modo, se saem as castas mais abastadas sobraria uma enorme massa dos imigrantes no país somada, claro, aos fodidos mais variados. Em Elysium a sujeira é trocada pelo visual clean, limpo e afável – e pela utilização do francês somado com o inglês como idiomas existentes pertencentes a classe rica num elitismo teimado pela narrativa. A visualização de tudo na própria ilha espacial Elysium é tratado paradoxalmente quanto à Terra, onde Elysium realmente metaforiza o paraíso a ser alcançado pelos terráqueos em agonia.
Acerca da questão de paraíso e inferno somos banhados por outro contraste pesada entre bem e mal, agora greco-romano, numa representatividade simbólica e análoga dos Campos Elísios e do Tártaro, na clássica alusão entre céu e inferno aqui contextualizada. Onde os detentores do poder em Elysium deixavam seus indesejáveis na Terra. A Terra seria a significação do Tártaro onde ficavam os Deuses banidos vigiados pelo Deus do submundo Hades – isto na mitologia grega, já que na romana o Tártaro era local de diversos pecadores e protegido por uma hidra de 50 cabeças. No filme há um regulador trabalhista análogo à Hades e a tal hidra. Um chefe controlador direto das almas que seria John Carlyle (William Fichtner) dono da empresa de tecnologia robótica Armadyne, e responsável por grande parte da tecnologia de Elysium, e que tem uma estreita relação com Delacourt (Jodie Foster) a grande poderosa de Elysium. Este último local representaria os Campos Elísios, local de Deuses e almas heroicas, santas, sacerdotais e poetas. O que traz uma puta ironia ao negócio, onde a história contada pelos vencedores criava suas mitificações e as sacralizavam num protecionismo abusivo. Com a justificativa de manter o sistema girando. Esta é uma analogia interessantíssima levada a cabo por Blomkamp. Notável o tratamento às castas inferiores no que se acrescenta em relação às suas condições de trabalho, que retornam quase aos tempos de revolução industrial (mais uma referência, aqui mais óbvia). Como se uma nova revolução tecnológica tivesse transformado implacavelmente a sociedade, onde as mais diversas e divergentes condições de sobrevivência diante da exploração trabalhista, viessem a assemelhar-se a muitas de 150 anos atrás numa espécie de eterno retorno nietzschiano em que as alternâncias de situações nunca findariam e sempre mostrar-se-iam pertinentemente repetentes. Isto mesmo nos seus pormenores como o distanciamento social e físico cada vez maior entre patrão e empregado.
Acaba pecando em alguns momentos exatamente por se propor menos em seus conflitos internos e diversas analogias pouco exploradas (excelentes sim, mas não possuem a profundidade quanto deveriam). Um roteiro mais bem acabado teria sido de enorme valia para uma maior apreciação do filme que fica aquém de seu próprio potencial. Tudo o que afirmei acima está perambulando pelo material. Desde Nietzsche ao conflito bem e mal grego, dentro de um comentário social de degradação dos imigrantes. Mas acaba por apontar apenas estes processos do que de fato os trabalhar em função duma possível catarse sobre a questão.
A crueza temática do diretor merecia um tratamento mais denso a algumas questões, porém um filme dum orçamento parrudo dificulta o espaço para tratamentos mais acabados por direcionamentos de mercado. Elysium é um interessante e bom filme onde seu problema reside no fato de se encurtar suas ótimas teorias e aspectos metafóricos mais do que deveria. A dicotomia neste cinema sendo ainda mais problematizada em sua estrutura social e seus pormenores geraria elementos mais invocados que venderiam o longa mais do que bom entretenimento. Mesmo com suas dificuldades nestes esquemas narrativos, aqui está um ótimo exemplar de um gênero por vezes tão destroçado, mas sempre de inomináveis proposições futuras.
Texto escrito a 13 de março de 2014, e agora recauchutado para apreciação.
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