Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Espetáculo visual, mas roteiro escorrega. Cate Blanchett, pelo menos, sai incólume.

6,0

Sucedendo o filme Elizabeth, chega aos cinemas, quase dez anos depois, Elizabeth – A Era de Ouro. Ao contrário do filme de 1998, que tratava da consolidação da Rainha Virgem na coroa inglesa – período menos conhecido de sua biografia –, essa continuação se volta para o período áureo (e também mais popular) de seu governo, quando ela impôs uma notável derrota à maior armada naval do mundo naquele momento, a armada espanhola, e legitimou a liberdade religiosa no país. Os problemas do primeiro filme, contudo, se mantiveram; alguns até se acentuaram. História e ficção novamente não se harmonizaram.

Elizabeth (Cate Blanchett) é uma mulher mais madura e aparentemente acostumada com os exercícios de poder. Seus inimigos agora são mais nítidos. Ela tem de enfrentar a resistência dos católicos que teimam em não aceitá-la como rainha – por ser simpatizante do protestantismo e filha ilegítima de Hnerique XVIII – e apóiam a ascensão de sua prima Mary Stuart (Samantha Mortom) ao trono. Soma-se a isso o confronto político com a Espanha e têm-se um momento histórico fervilhante em intrigas, convulsões populares, golpes, batalhas e etc. Como se não bastasse o lado político de Elizabeth às voltas com tantos problemas, seu lado “mulher” se envolve num triângulo amoroso nos bastidores da corte. Clive Owen interpreta Sir Walter Raleigh, recém chegado do Novo Mundo, que encanta Elizabeth com histórias de além-mar, com suas aventuras e com seu ar galanteador. Bess (Abbie Cornish) é sua cortesã favorita, uma das poucas pessoas com quem a rainha consegue compartilhar a sua intimidade e que também cairá nas graças de Raleigh. Elizabeth, Walter Raleigh e Bess: as três pontas do triângulo.

Só pra constar, fidelidade histórica novamente não é a ambição desse filme. Por exemplo, se Elizabeth assumiu o trono inglês aos 25 anos e se são retratados episódios de seu 27º ano de governo, sua idade no filme, então, seria 52 anos. Não é o que aparenta, entretanto, o semblante de Cate Blanchett. E, segundo dados históricos, no ano em que se passa o filme, Sir Walter Raleigh teria apenas 19 anos – Clive Owen, poderia interpretar, portanto, apenas o pai de Raleigh. Todavia, é normal os roteiristas tomarem certas liberdades ao tratarem de acontecimentos passados. Dilatações, compactações, movimentos no tempo, exclusão de determinadas passagens e até inserção de algumas novas são recursos disponíveis pra isso, desde que não distorçam a História a ponto de contradizê-la. Por esse lado, as licenças, tanto nesse filme quanto no primeiro, não seriam problema. O problema é que – sobretudo nessa continuação – elas são usadas pra se criar uma ficção maniqueísta e melodramática que minimizam a História e, no fim das contas, a própria figura de Elizabeth I. 

O roteiro a quatro mãos de William Nicholson e Michael Hirst (que assinou Elizabeth) é tão canastrão quanto a interpretação de Clive Owen. Todo o tempo Walter Raleigh desfia intermináveis falatórios sobre o quão excitante é a sua vida, dá conselhos sobre amor, sobre política. É o típico herói aborrecido. Não combina de modo algum com a personalidade de Elizabeth. Escolhê-lo como o interesse romântico da rainha não foi, mesmo assim, um erro. Só alguém com uma vivência exterior àquelas conveniências da corte poderia lhe despertar algum interesse. O problema é, a todo instante, o filme martelar o quão galante, o quão heróico, o quão bam-bam-bam ele era. Com isso, Raleigh perde seu caráter humano e cai no estereótipo completo, num processo inverso ao que, tanto esse quanto o primeiro filme, tentaram fazer com Elizabeth: desmistificá-la e mostrar seu lado humano. São personagens que não se casam e, só por isso, desmoronam o tal triângulo – que ainda gera outras estranhezas. Foi impressão minha ou o roteiro realmente flerta com certo lesbianismo? Se sim, porque deixá-lo tão velado? Se não, é sinal de que alguma confusão ao passar os sentimentos dos personagens foi criada.

Mas não pára por aqui! Novamente os mauzinhos rodeiam Elizabeth: sua prima Mary Stuart parece uma louca obcecada pelo trono (talvez até tenha sido mesmo), os espanhóis embrenham-se numa guerra santa de católicos para salvar o mundo das blasfêmias de Elizabeth contra a Santa Madre Igreja. E dá-lhe textos proclamativos, frases feitas, figuras doentias, fanáticas e totalmente unilaterais. Até Elizabeth acaba padecendo dessa simplificação ao comportar-se mais como uma adolescente que como uma mulher madura e rígida – seus 27 anos de reinado deveriam ter servido pra torná-la menos infantil! Seu lado mais humano deveria transparecer sutilmente, sem essa bipartição nítida entre a mulher forte do trono e a mulher frágil dos bastidores.

A sutileza que falta ao roteiro sobra, entretanto, na atuação de Cate Blanchett. Assim como em 1998, ela se salva e é a âncora do filme. Ela consegue delinear duas Elizabeths: a Elizabeth pública, acostumada com os entediantes compromissos e adulações e com as pesadas obrigações, e a Elizabeth da intimidade, carente, mas crítica e reflexiva sobre a sua condição. E é ao fundir essas duas metades que Blanchett tem seu maior acerto, em instantes em que a rainha deixa que se quebre a parede de vidro entre ela e as demais pessoas e, também, quando, mesmo se desmanchando em fragilidade, seu ar de superioridade ainda se faz notar.

O diretor Shekhar Kapur confirma o seu gosto pelo espetáculo, pelo exagero. Os cenários são muito opulentos, vistosos, coloridos, teatrais (reparem em como são dispostas as velas numa cena em que Elizabeth se banha). E o roteiro o dá subsídios pra isso. Há vários momentos em que ele pode exercitar sua mania de grandeza, desde as batalhas navais (com Sir Walter Raleigh dando uma de Jack Sparrow) até os arroubos de autoridade ou de angústia de Elizabeth. Tudo é claramente desenhado – a Inglaterra sempre banhada por um mar de luz (A Era de Ouro...) enquanto a Espanha é mergulhada num tom esverdeado doentio e fantasmagórico. Num filme que carece de um roteiro mais firme, não seria a direção que, sozinha, o iria salvar. Pelo menos Kapur cria belos quadros e parece se satisfazer com o trabalho.

Há rumores de que um terceiro e último filme estaria sendo planejado, encerrando assim uma trilogia que desnude a solidão e o peso que o poder traz. E Elizabeth, como poucos outros, é emblemática disso. Seus realizadores, no entanto, vão ter que deixar pra trás muitas das muletas e “facilidades” com que se acostumaram nesses dois primeiros filmes e que prejudicaram justamente o entendimento e o olhar crítico de como o poder molda, mais do que a qualquer outro, aquele que o detém.

Comentários (0)

Faça login para comentar.