Ao mesmo tempo que prestigia o posto de um dos autores contemporâneos mais adaptados para a TV e cinema, o escritor Stephen King também amarga um dos índices de maiores bombas feitas a partir de suas obras. Parte se dá pela quantidade absurda de livros seus que caíram na mão de diretores e roteiristas fracos, mas outra parte ocorre principalmente pelo fato de King ser, antes de tudo, um autor essencialmente literário. Na maioria de seus trabalhos existe um crescente de loucura e abstração que dificilmente poderia ganhar uma forma materializada em imagens – pelo menos não uma forma fiel à narrativa original. A beleza da obra de King está justamente na parceria que ela estabelece com a imaginação do leitor, que empresta a seus monstros e fantasmas um pouco de sua própria concepção visual de medo e horror. O conflito ocorre quando este leitor não os reconhece em tela.
A sabedoria por trás do êxito de um filme como O Iluminado (The Shining, 1980) é justamente limpar alguns excessos que não funcionariam em imagem e com certeza entrariam em conflito com a interpretação de história do público que leu o livro de King. Não à toa, o próprio escritor odiou a adaptação de Stanley Kubrick, mas não se pode negar que dificilmente outro faria melhor com um material tão difícil de transpor para cinema. Mais de trinta anos depois, King lançou uma continuação para sua história e ela agora ganha uma adaptação para o cinema pelas mãos de Mike Flanagan, em Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019). O curioso é que, por mais que Flanagan já tenha adaptado outra obra de King antes, Jogo Perigoso (Gerald’s Game, 2017), sua proposta de continuação é a partir do filme de Kubrick, e não do livro original. Sendo assim, os acontecimentos são fiéis à leitura do trabalho de 1980, com direito a recriação de cenas e novos atores reprisando papéis que antes foram de Jack Nicholson, Shelley Duvall, Scatman Crothers e Danny Lloyd.
Por se basear na versão mais clean de Kubrick para essa história, é estranho que Flanagan tenha optado por abraçar os excessos literários de King que antes estavam limados. Doutor Sono, então, se divide em dois filmes: de um lado evocando o clima, a trilha, a fotografia, a atmosfera do clássico de 1980; do outro, seguindo pelo caminho inverso de apelos, ritmo enérgico, tramas expositivas e com a fantasia correndo em maior evidência. Uma metade não se comunica bem com a outra, justamente pelo fato de Kubrick e King terem visões diferentes para esse universo, enquanto Flanagan tenta abraçar essas duas visões e não sabe imprimir sua própria. Da mesma forma, não consegue chegar no ponto central de ligação entre as duas histórias e os reflexos de uma sobre a outra, em especial na questão do alcoolismo de Jack Torrance herdado pelo seu filme Danny – agora adulto e interpretado por Ewan McGregor.
O Iluminado é uma história que trata, essencialmente, dos problemas de comunicação geracionais, do isolamento, do processo de criação, além do alcoolismo e da relação ambígua de amor e rancor do indivíduo com sua família. Doutor Sono procura espelhar esses temas e aprofundá-los dentro da ideia de um filho assombrado pelos fantasmas de sua família destruída pela doença do pai, que se vê diante de uma criança também especial e necessitada de compreensão e ajuda. Danny percebe muito de si na jovem Abra Stone (Kyliegh Curran) e enxerga muito de seu pai ao se olhar no espelho, de modo que seu grande conflito é a busca de uma redenção por salvar a garota de uma seita que mata os iluminados em busca de poder e juventude. Salvar Abra é poder consertar o passado e salvar o pequeno Danny, lá em 1980, que nunca soube compreender ao certo a razão de ser diferente de outras crianças e a fonte de seus dons sobrenaturais.
O período de tempo que separa essas duas tramas não é alcançado pela câmera de Flanagan, de modo que o alcoolismo de Danny pode até ser facilmente compreendido pelo público, mas a facilidade com que ele se livra do vício jamais garante a profundidade que o personagem exige, despertando quase nenhuma empatia por ele. Paralelo a isso, o núcleo dos vampiros caçadores de iluminados destoa de todo o resto através de personagens caricaturais, efeitos especiais de qualidade duvidosa e frases de efeito que já eram fora de moda lá nos anos 1980. Por meio desse núcleo, Flanagan abre mão do minimalismo sufocante do filme de Kubrick e abraça todas as adaptações kitsch que tanto fizeram a má fama de King no cinema de horror/fantasia ao longo das décadas. Isso não seria de todo ruim se Doutor Sono fosse simplesmente uma adaptação direta do livro homônimo de King, e não a continuação do filme de Kubrick.
O alcance da imaginação de King nesse universo criado para O Iluminado e Doutor Sono é dificilmente compreendido em sua completude através de adaptações fiéis para o cinema, o que explica a opção de Kubrick em alterar livremente aquilo que lhe convinha e ficar apenas com o que achou essencial para funcionar enquanto filme. Flanagan não sabe repetir isso e acaba por tentar materializar o que funcionaria muito melhor se sugerido a cargo da imaginação do espectador, e potencializar assim o horror, como sempre ocorre nos melhores filmes do gênero. Doutor Sono, o filme, sobra então mais como um fan service para fãs de O Iluminado que sempre quiseram revisitar as instalações do temível hotel Overlook – e quando foge disso, o desastre é certo.
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