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Críticas

Cineplayers

Dois filmes em um.

6,0
Enquanto O Dono do Jogo passava diante dos meus olhos, uma curiosa lembrança do início de minha adolescência me veio à mente: eu devia estar no 1° ano. Era a avaliação final da matéria de educação física, a qual deveria ser feita em dupla, e o exercício era montar um tabuleiro de xadrez e jogar o esporte diante dos olhos do professor. Eu e meu parceiro de atividade não sabíamos absolutamente nada sobre as regras do jogo, posições das peças, e por aí vai. Mas nos arriscamos mesmo assim. E não sei como, eu ganhei a partida.

Uso este pequeno exemplo pessoal para exemplificar o tipo de experiência que é o novo filme de Edward Zwick, diretor versátil e competente que já oscilou entre thrillers políticos (Nova York Sitiada e Diamante de Sangue), dramas de guerra históricos (O Último Samurai e Um Ato de Liberdade), e até mesmo comedias românticas (Amor e Outras Drogas). Certos esportes atingem uma universalidade grandiosa, como o futebol, mas atividades como o xadrez passam sob desinteresse ao olhar de uns e com um nível de fascínio imensurável aos olhos de outros. É certamente um tema arriscado de se falar, especialmente quando o argumento do roteirista Steven Knight se baseia na história real de Bobby Fischer (Tobey Maguire), um dos mais notórios jogadores de xadrez do mundo, e sua partida de cunho até mesmo político contra o russo Boris Spassky (Liev Schreiber), uma vez que nos encontramos em pleno período da Guerra Fria.

Apesar da história nos comprovar a aliança entre dois temas distintos (os EUA realmente usaram a imagem de Bobby como a “glória do país”), o viés político e a trama esportista de O Dono do Jogo se tornam uma faca de dois gumes para a narrativa de Zwick. Como análise de um período histórico importante, trata-se de um filme ingênuo, e até mesmo imaturo. Tanto os efeitos da Guerra Fria quanto suas consequências posteriores são deixadas em segundo plano, evitando problematizações e permitindo apenas que o triunfalismo americano fale mais alto, no fim das contas. Sim, é uma história levada as telas para encher, uma vez percebida a notável covardia da produção em refletir e debater.

Como uma análise esportiva, o filme se sai bem melhor. Mesmo para os nada entendidos sobre xadrez, o filme apresenta uma habilidade imersiva capaz de permitir que o espectador experimente a tensão e nervosismo do extremo raciocínio exigido para tal jogo. O próprio conflito entre Bobby e Boris, apesar de recorrer a diversos clichês estilísticos para transmitir alguma coisa, é funcional justamente pela agilidade imprimida por Zwick, que transforma o filme, se não em algo historicamente relevante, ao menos em uma experiência sensorial atrativa e divertida.

Para isso, também contribui muito a própria personalidade de Bobby Fischer que, apaixonado pelo esporte desde criança e demonstrando um talento nato para tal, é levado a uma espécie de estado epidérmico devido a sua obsessão pelo jogo. É um sujeito num estado crescente de paranoia, hipersensível a barulhos e com constantes ataques de fúria. Um personagem barulhento e excêntrico, que para uma grata surpresa, tem suas nuances bem capturadas pela performance carismática de Maguire, que transforma um personagem instável num rosto por quem é possível torcer. Nesse ponto, é incômodo o “vilanismo” empregado ao Boris de Liev Schreiber, que já há alguns anos, veio demonstrando um notável talento para belas composições de personagens, e os estereótipos certamente impostos bloqueiam as chances do ator em elaborar um trabalho menos manipulativo.

Assim parecem existir dois filmes em um no corpo de O Dono do Jogo: a análise política e histórica, superficial e preguiçosa, e o thriller esportivo somado a um estudo de personalidade, onde o filme ganha competência e riqueza na hora de entreter o público. Edward Zwick certamente pode mais.

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