Na semana passada, em 27 de abril, as empregadas domésticas tiveram mais um motivo para comemorar seu dia e homenagear Santa Zita. Há 1 mês, foi promulgada a Proposta de Emenda Constitucional nº 66, conhecida como PEC das Domésticas, que prevê a ampliação de direitos da categoria, tais quais FGTS, seguro-desemprego, aviso prévio, indenização, entre muitos outros. Desse processo de evolução trabalhista, vêm surgindo diversas questões, por parte do Governo e da própria sociedade, das quais vale refletir sobre a equiparação de obrigações de empregadores de outros setores, a dirigir empresas com fins lucrativos, à de pessoas que contratam um serviço para manutenção do lar, do qual se obtém apenas gastos.
A essa discussão de cunho econômico, vem agregar em caráter social e ideológico o documentário Doméstica (idem, 2013), no qual o cineasta Gabriel Mascaro vai direto ao cerne da questão, sem rodeios. Sua proposta é colocar uma câmera na mão de sete adolescentes de diversas capitais do país e fazê-los entrevistar as empregadas domésticas que trabalham em suas casas. Pelas imagens captadas e imagens formuladas pelos jovens, o diretor extrai uma visão menos viciada e tendenciosa das vidas dos entrevistados, que se sentem menos intimidados em contar suas histórias. O resultado é tão satisfatório que a impressão é a de que, pela primeira vez, essas figuras enfim ganham ressonância, no cinema e na vida do espectador.
Também inteligente é a análise de um grupo tão heterogêneo, exposto às mais diferentes realidades. Se Vanusa é doméstica e chofer num lar de alta classe, Flávia é empregada da empregada numa casa sem reboco; enquanto os pais de Brigitte surpreendem sua funcionária ao convidá-la para se juntar à mesa durante o Shabbat, festa judaica, Jennifer e família comemoram o Natal com Sérgio, o empregado da casa. No entanto, toda essa diversidade se homogeneíza no comum semblante de abandono de cada uma dessas figuras. E quando não notamos a tristeza no olhar, um relato terrível acompanha a história do entrevistado, conferindo profundidade, por exemplo, a todo carinho e dedicação de Flávia no tratamento dispensado ao filho de sua patroa, portador de deficiência. E se este é um exemplo voluntário de entrega à profissão, todos os outros casos mostram compulsória renúncia da vida pessoal, que só fazem corroborar os direitos previstos na PEC das Domésticas.
De modo a tornar a forma condizente com o conteúdo realista e contundente, a direção amadora surge trôpega, cambaleante, conferindo imediata sensação de desconforto. Porém, um plano em particular, bastante hábil e autoexplicativo, parece previsto em storyboard: Lena forra uma cama de casal, quando um travelling lateral leva o espectador ao encontro de sua patroa, que, deitada, brinca com a filha recém-nascida da doméstica. Lena e seu bebê são, de fato, muito bem tratados pela família; contudo, tais laços de afeto, que naturalmente se estabelecem pela longa convivência num ambiente informal como o lar, nunca se sobrepõem à relação de trabalho. Forma-se uma ligação esquizofrênica, com efeito devastador para uma das partes. Ao contrário do que a chefe do lar diz, Lena jamais será da família; permanecerá sempre, como a cruel sequência citada ou seu cômodo nos fundos sugerem, à margem da casa.
No relato mais esclarecedor (e, propositalmente, o derradeiro) desse excelente documentário, a história de Lucimar, amiga de infância de sua patroa. Quando perguntada sobre a relação, Lucimar é enfática: de sua parte, “a relação não mudou, amadureceu”, em tom de cortante resignação. Como diria Karl Marx, a classe dominante impõe a ideologia dominante, e esta fora apresentada a Lucimar ainda criança, assim como seu destino: ela é neta do caseiro da fazenda de sua atual patroa, amiga de outrora. Também ciente dessa ideologia, a outra parte declara a dificuldade de ter de se impor como patroa, num conformismo simulado e pedante que jamais oculta o real conforto de sua posição. Homenagem inconsciente à memória de Gilberto Freyre.
Divagando sobre o tema, encontro nesse comportamento um paralelo com a tese levantada por Guy Debord no interessantíssimo A Sociedade do Espetáculo. Embora trate-se de uma crítica teórica sobre a sociedade e o trabalho aplicada a um outro contexto (consumo e capitalismo), Debord levanta a questão da reificação das pessoas, isto é, redução da vida humana do trabalhador ao valor do objeto que produz, tornando-se o homem o produto em si. Ora, se uma doméstica não produz algo palpável além de auxiliar na manutenção de um lar, o que o empregador extrai no processo de mais-valia marxista é justamente o direito à vida de seu empregado, que passa a viver a vida do patrão. Exemplo disso é o drama de Gracinha, martirizada por ter perdido os últimos meses de seu primogênito em vida justamente num período em que cuidava em tempo integral da matriarca da família para a qual trabalha. Estaríamos, então, diante de uma variação não capitalista da tese do escritor francês e da base de lucro sistematizada por Karl Marx?
Numa análise final, bem menos abstrativa, concluo que, assim como Kléber Mendonça Filho aponta para o coronelismo enraizado na Recife atual em O Som ao Redor (idem, 2012), o mosaico de histórias reveladoras de Gabriel Mascaro (conterrâneo de KMF) compõe um quadro que deflagra um Casa-Grande & Senzala contemporâneo em todo o Brasil. Como tal panorama, fixado no inconsciente dos brasileiros, não irá variar per se, cabe à PEC 66 fazer o mínimo: implementar e resguardar os direitos trabalhistas das empregadas domésticas.
Resenha ma-ra-vi-lho-sa. Completa. Quando pensei n'O Som ao Redor, ele surpreendentemente apareceu no texto pra fechá-lo com chave de ouro.
Crítica excelente!
Ótima crítica, mesmo.
Bela crítica