A montagem não nega: na cena de abertura, já reconhecemos a mão de Fernando Meirelles agindo por trás da narrativa escrita por Anthony McCarten (dos premiados de gosto duvidoso O Destino de uma Nação, A Teoria de Tudo e Bohemian Rhapsody). Embora não conte com o brilho de Daniel Rezende na função, a agilidade como abre uma narrativa biográfica, cortes rápidos, movimentação de câmera pulsante por vielas pobres da Argentina, deixam claro que o cineasta consagrado no exterior estava reencontrando o gás perdido há algum tempo. Ninguém poderia imaginar que esse projeto aparentemente de encomenda fosse revitalizar não apenas o seu status de autor, mas sua vitalidade cênica, e sua sede está visível na produção. Essa montagem evidente desde o primeiro momento, acompanha toda a produção; as cenas de conclave são incrivelmente ágeis e bem filmadas, e continuam mostrando que a parceria dele com César Charlone na fotografia continua impecável.
O filme acompanha os encontros entre os Papas Bento XIV e Francisco durante o papado de um e previamente a substituição do outro, por questões polêmicas das quais o filme não foge. Esse é um dos aspectos positivos do surpreendente roteiro de McCarten, não se furtar em adentrar os pormenores das questões obscuras em relação à qualquer um dos dois personagens, humanizando ambos e tirando as carapaças que os colocaram em posições tão antagônicas diante da opinião pública. Ao retirar as imagens de anjo e demônio de dois homens, o filme acaba por aproximá-los e compreendê-los, abarcando muito mais complexidade a seres humanos com suas contradições, seus erros e suas dúvidas, principalmente; dois homens da fé com todos os traços que os aproximam de muitos infiéis.
Ao desenhar os encontros entre seus protagonistas como o ponto focal da produção e rechear os mesmos com um bom humor, uma vivacidade, um toque de sarcasmo de parte a parte, o filme desmonta nossas percepções em relação a seus comportamentos e se abre para uma relação saudável entre espectador e obra sem cobrança por fatos históricos de maneira macro e se contentando em aproveitar o prazer daquela convivência conjunta, repleta de diálogos impagáveis e com um senso do inusitado dos mesmos que tiram a rede de proteção do projeto, que avança preparado para chamar a atenção. Muito centrado em suas figuras quase únicas de ação, Meirelles em nenhum momento ameaça aborrecer com seu filme, pelo contrário, acaba se mostrando uma experiência das mais agradáveis.
Dois Papas só escorrega quando (como sempre) a exigência pelas amarras da biografia se fazem presente. Se Meirelles sabe exatamente o que fazer quando tem a trama no pulso, com planos sutis que comunicam muito da narrativa (os closes cada vez mais explícitos entre eles durante os doces embates; os semblantes de ambos perfilados no conclave), em determinado momento um dos dois personagens precisa apresentar uma situação em flashback particular, e essa situação se extende além do devido, para contextualizar algo já compreendido. As mudanças de seu ofício incomodam, variando entre diversas possibilidades de condução e se entregando a estratégias fáceis de observação; toda essa sequência - que não é curta - parece descolada do resto do filme.
Ainda que seu trabalho, no geral, seja acima da média ao promover um reflexo entre dois homens multifacetados enquanto personagens, Meirelles e McCarten têm pra si dois monstros susssurantes. Jonathan Pryce e Anthony Hopkins estão em lugares muito especiais de contenção e inteligência dramática, confiando em seu texto e seu diretor e contribuindo para a reflexão sobre suas personas com um entendimento quase mediunico daqueles sujeitos com relevos comuns, ainda que construções ímpares. Duas interpretações complementares, quase dependentes, que se tornam únicas na compreensão de suas simplicidades. Ao acessar o humano em cada um deles, Pryce e Hopkins nos fazem acessar todo o jogo cênico como se assim não o fosse, um mergulho suave em um universo tão distante de todos nós, tão grandioso, tão superlativo, retratado por esses dois atores com profundo naturalismo e imensa empatia.
Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo
Não poderia concordar mais com suas palavras. Escorregou feio no flashback, mas de resto é um filme belíssimo