Django Livre (Django Unchained, 2012), de Quentin Tarantino, é mais um ato de rebeldia de seu diretor. Responsável por uma série de filmes icônicos das últimas décadas, Quentin consagrou-se pelos longos diálogos entremados de explosão de violência, retratando um mundo amoral onde párias alienadas por sexo, tédio, drogas e violência foram uma alegoria para a geração slacker dos anos 90 e que, ao chegar nos anos 2000, implodiu o próprio cinema de crime para, a partir de Kill Bill Vol 1. (idem, 2003), radicalizar e explorar todos os modelos narrativos possíveis. O caráter de homenagem apaixonado dessas obras acabou por esconder outro caráter tão importante quanto – o da intertextualidade entre os filmes exploitation sensacionalistas e os filmes criados sob o pensamento autoral. Tudo isso habitando o universo violento e controverso do diretor.
Tarantino já namorava o western de longa data – não apenas por cenas como a sequência envolvendo o duelo entre Beatrix Kiddo e Elle Driver em Kill Bill Vol. 2 (idem, 2004) mas também por conta do uso do tipo de película e dos filtros que utilizava, que criavam pastiches paródicos de seus filmes favoritos, e da grande proporção de quadro, onde a “dança” que relaciona posição de personagens, profundidade de campo e proporções exageradas tão explorada por nomes como Leone e Corbucci nos anos sessenta e setenta; isso para não dizer o reaproveitamento de nomes como Ennio Morricone em novos contextos em suas características trilhas sonoras.
Todo esse caminho percorrido acabou desaguando em Django Livre, que por ser um faroeste de Tarantino, passa longe de ser, exatamente, um faroeste. É um filme de gênero sobre o cinema de gênero. O diretor sempre prezou pela metalinguística em seus filmes – longe de ser uma visita a um museu de imagem, é uma percepção aberrante, tanto na história quanto na maneira de se dirigir um filme do gênero; um compêndio de muitas ferramentas narrativas e linguagens estéticas do audiovisual que se consolidaram ao longo do século vinte; Django Livre é “errôneo” em sua própria concepção – não se passa no Oeste selvagem, mas no Sul escravista, invocando todo um passado de ódio racial encenados com constante humor negro pelo diretor. A relação antagônica brutal não envolve mais a “expansão da fronteira”, mas a destruição e reescritura de uma história escrita com sangue. Assim como em Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009), a história só pode ser reconstruída da mesma forma.
Em um filme que exagera na violência e na condução do direcionamento do olhar, Tarantino não hesita tanto em mostrar os maus-tratos cruéis que eram conferidos aos escravos quanto ridicularizar o racismo e ações coletivas discriminatórias. Sequências como as que Django chega na cidade ou uma KKK desorganizada dão o tom cartunesco que retrata a consolidação dos valores WASP (branco, anglo-saxão e protestante) de maneira pervertida, com os responsáveis pela moralização do país sendo os verdadeiros “degenerados”.
Descrito pelo diretor como uma história que só poderia ser feita em seu país por ser profundamente ligado à sua história, Django Livre é um western consciente do gênero onde é encenado ser muitas vezes o conto sobre a formação de uma nação, que constituiriam os Estados Unidos como ele é hoje – mas como se inspira mais no spaghetti, não esconde a visão da formação de tal sociedade de uma forma brutal, se enquadrando dentro do tema preferido de Tarantino, seguido pelo mesmo principalmente na última década: a vingança.
O eco dessa temática se encontra na escolha de um protagonista negro – e a presença de rap e funk na trilha sonora do filme só ajuda a reforçar a influência da blaxploitation no filme, onde mesmo quando dirigidos por diretores brancos, como Jack Hill, que revelou a musa Pam Grier, serviram para retratar o negro por eles mesmos, onde em filmes frenéticos e muitas vezes caricaturais a afirmação do social no cinema revelou inúmeros artistas presentes na indústria até hoje.
Django Livre é a visão do sul aos olhos de um negro, o escravo Django, que ao longo filme de quase três horas, irá tornar-se o homem liberto que reescreve a história; a longa extensão do filme o separa praticamente em duas obras diferentes. O primeiro bloco do filme aborda o nascimento e a criação do mito e suas primeiras provações; o segundo é sua grande provação, a grande vingança do herói contra aqueles que o escravizaram e o separaram da sua amada. Django talvez possa parecer um dos mais narrativos filmes do diretor – um único protagonista, uma única narrativa linear desenrolada por pontos de virada – mas tal “cartilha” é seguida com outro olhar, um olhar sobretudo irônico – se seus filmes sempre fracassam como mímese, é porque apostam em um terreno potencialmente mais interessante, o da recriação.
Para tanto, o mundo sem moral nem valores nobres de Tarantino cai como uma luva nessa outra visão sobre o racismo presente à época. O heroísmo declarado se dá através na deslocada combinação entre a utilização do pathos numa história que recusa a moral – a paixão e o excesso do obstinado protagonista não intenta enobrecimento ou engradecimento moral, mas sim resgatar sua esposa, da qual foi separado à força e exigir à retratação.
Django Livre reparte espaço entre comédia e suspense através, principalmente, de Dr. King Schulz, personagem interpretado por Christoph Waltz – o mesmo “articulado violento” que havíamos visto em Hans Landa agora é uma espécie de “mentor pervertido” de Django, com um código de ética próprio e que molda o protagonista para a violência. Exagerado como nunca em seu alargamento dos tempos diegéticos e dos diálogos que podem descambar para a explosão de violência gráfica a qualquer instante, a nova obra de Tarantino é tal como o seu coadjuvante – a aliança entre conhecimento e brutalidade, entre agonia e explosão.
É não só na sensação constante de ameaça injetada na estrutura rítmica dos cômicos diálogos e no heroísmo amoral que reside esse distanciamento, essa sensação de estranhamento em Django Livre, mas também no casamento entre variadas técnicas estético-narrativas, seja a utilização da consagrada zenital (câmera no topo) de Scorsese na cena mais explosiva Taxi Driver (idem, 1976), utilizada com um substituto sem “norte” de olhar ao plano geral, o zoom veloz e introdutório típico dos spaghettis quando queriam ressaltar uma expressão dentro de quadro e, narrativamente, a estrutura indefinida com o conflito principal estendido ao infinito típica dos blaxploitations: filho ilegítimo dos anos 70, o exagero estilístico de Tarantino provoca um distanciamento do olhar, não apenas por fazer referência ao cinema – mas também por falar sobre o cinema. A trilogia iniciada com Bastardos Inglórios são filmes sobre o cinema, obras que só poderiam existir nesse meio de expressão.
Outra razão do distanciamento é a trilha sonora, jogando para trás o rap e o funk para sonorizarem um faroeste, conceito parecido utilizado por Sofia Coppola em Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006): a criatividade de Tarantino não consiste na criação, mas na recriação, como o próprio rap – que se utiliza dos samples de músicas anteriores para criar novos ritmos e novas estéticas. O “remix” de Tarantino é resultado da fascinação do próprio da diversidade de olhares que um período histórico razoavelmente curto inspirou – e Django Livre atira para todos lados em sua imperfeição frenética, conjungando mais de um século de história sobre um mesmo teto. Mais do que um olhar diferenciado, a obra de Tarantino é sobre o olhar. Existe por causa dele, e em nome dele.
Esse olhar bizarro de Tarantino “desobedece” a história pela segunda vez em nome da fabulação: documentar e catalogar o tempo não é tão importante quando construir o próprio tempo, espaço e universo diegético. Seus filmes não são vingança apenas em seus motes – mas são vingança também na desobediência, no embaralhamento de cartilhas, na esquizofrenia de gênero. Os judeus vingativos e o escravo livre à base da pólvora pertencem antes ao cinema do que qualquer registro historiográfico. A história do mundo de Quentin Tarantino é bastarda – antes prefere reescrevê-la do que permitir ser escrito por ela.
No segundo bloco do filme, Django enfrenta figuras típicas consagradas do cinema americano: encarna-se na figura de Calvin Candie, interpretado por Leonardo Di Caprio, um senhor de terras branco, psicótico, incestuoso e ingênuo, um “self-made men” que intimida a todos com a sua figura ao mesmo tempo elegante e rústica, caricatural e ignorante – a figura repulsiva que Tarantino condena, pois sua violência é desgovernada, fetichista e entediada, ao contrário de Schulz, seu espelho, a figura da diplomacia e da estratégia.
Seu braço-direito, interpretado por Samuel L. Jackson, é o maior opositor de Django: o mordomo Stephen, um cômico e subserviente escravo-mordomo, o “negro domesticado” da velha Hollywood, de quem os brancos não teriam medo; sua caracterização rabugenta e abusada é o contraponto ideal para o Django de Jamie Foxx, um herói sério, sisudo e revoltado, disposto a encarar o mundo de forma suicida.
Em Django Livre, a senzala entra em guerra com Casa grande, os tiroteios se dão dentro de casa, o subserviente não é poupado: a violência invade a esfera privada, cobrando os senhores por sua brutalidade impensada e a opulência megalômana não é nada contra a vingança desgovernada. Se o original de Corbucci deflagrava um mundo podre e fantasmagórico através do pistoleiro de luto de Franco Nero, o pistoleiro de Tarantino deflagra o nascimento da sociedade WASP – e a sua imagética destruição.
A política dos autores é para Tarantino não apenas uma oportunidade de explorar fetiches e aspirações estéticas: é antes sua grande oportunidade de dizer “não”. De rabiscar, riscar e escrever de novo. Django Livre é um filme da pós-modernidade, um filme que recusa qualquer pregação ideológica para assumir sua condição camaleônica e de identidade fluída. Tarantino trata o faroeste como ferramenta, não como muleta; como horizonte de expectativas, não como linha de chegada. É essa profunda compreensão dos mecanismos narrativos que faz a volta ao tempo de Tarantino ser um filme tão poderoso para as discussões estéticas que tomam o cinema mainstream atualmente. É justamente o classicismo fragmentado e virado de cabeça pra baixo que torna seu filme tão singular.
No século XXI, o projeto estético de Tarantino criou um novo artista – se antes versava sobre as idiossincrasias e atribulações da vida de gângster, sua ambição estética não coube em só lugar. Bastardos Inglórios e Django Livre são o resultado do surto demencial e da falta de freios que acometeu o diretor ao tornar seu cinema, a partir de Kill Bill, uma viagem por diferentes estéticas e suas distorções sensoriais, sutis e explícitas que agora se firmam como uma consolidação baseada na dissolvição, na não-compactuação. É na perversão que Tarantino encontra sua expressão – em uma época que todos estamos cínicos e bem informados demais para ficarmos impressionados, ainda é um dos poucos que ainda tenta, filme após filme, puxar nosso tapete, acabar com nossas expectativas. Django Livre, afinal de contas, é a nota zero em conduta de um eterno desobediente. Afinal de contas, em um mundo amoral, nada é mais coerente e delicioso do que desobedecer.
nunca vi um cara falar tanta besteira quando esse Ma Darswik I
Premissa fraca, filme vazio e superestilizado. Faço das palavras do Koball as minhas.
Eu não consigo entender, seja no cinema, no futebol, na vida, o por quê de \"esse é melhor que aquele\", \"prefiro esse à esse\", Maradona ou Pelé, Loira ou Morena, Nolan ou Tarantino....os dois são ÓTIMOS!! QUEM GANHA É O CINEMA E NÓS, AMANTES DE CINEMA!!
Django foi o melhor do ano sim, mas isso não diminui outor títulos.
Sou fãzasso de Nolan, Scorcese e Tarantino, asiim como outros (De Palma, Scott, P.T. Anderson, Fincher, Del Toro e até Shyamalan - pra ficar nos vivos) e nem por isso fico comparando-os. Para um ser bom, não precisa desmerecer o outro.
Que venham mais Nolans, Tarantinos e Scorceses da vida. O cinema agradeceria!! Eu agradeceria!!!!!
PS: Seria uma parceria duradoura essa Watz+Tarantino??? Talentosa ao extremo, sem dúvida. Torço por mais filmes da dupla...