Daqueles capazes de nos tirar o ar em vista da projeção, este filme provém de uma onda que se despedia, ainda que buscasse inspiração, do pós-guerra, denunciando o que restou a partir de escombros e ruínas, das marcas nazistas desprezadas pelos outros, símbolos de pudor sustentados pela história e que para sempre perdurarão. Daí, após a inevitável intervenção da guerra sobre o cinema, novos cineastas surgiram. Um deles, Rainer Werner Fassbinder, talvez seja um dos mais emblemáticos; ao menos foi um dos que mais produziram em pouco tempo de carreira. Esse O Desespero de Veronika Voss foi um de seus últimos e mais importantes trabalhos, com características precisas de uma câmera em investigação, ao passo que expõe em alguns atos o expressionismo como impressão; e além disso, retrata o pesar de uma mulher, estrela abandonada entre luz e sombras.
Robert Krohn é um jornalista esportivo que se viu interessado na história da decadente atriz Veronika Voss, uma ex-estrela da UFA, cinema da década de 30 da república de Weimar. O termo decadente, aviso, pode ser uma constatação infeliz aqui. A história se passa na década de 50, em Munique. O filme é de 82, a ambientação cinquentista é um primor. Segredos são brevemente desvendados nesse roteiro linear que evoca a curiosidade confundida com interesse afetivo de um homem sobre uma mulher até então desconhecida. Neste filme de aparência elucidada, que reserva omissões dispostas ao mal do outro pelo bem próprio, uma busca desenfreada por respostas capta o egoísmo por grandeza ao tratar a desilusão e infelicidade da vida de modo a constatar a perversidade alheia em benefício particular. A podridão da mídia, particularmente dita, é desvelada enquanto menção em juízo.
Fassbinder provoca seu público a se atentar a circunstâncias da vida e no que nos agarramos para sair de determinados problemas. Para isso, na concepção da imagem, explora a fotografia em P&B contrapondo o bem e o mal, bem como a moral que permeia esses extremos. A coloração é veemente e integra a expressão da cinematografia. As relações postas em cena assinalam uma narrativa sufocante, a qual o papel dominante gera desconfiança pela incerteza e objetivo do cuidado – e reflete no real interesse que um personagem tem para com o outro. É a dúvida sombria imposta que se clareia durante a projeção e encontra um final aterrador, relativamente similar a obra prima de Wilder, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950). Ambos tratam envelhecimento como cerne da ação, diagnosticando a idade como um tabu para o cinema, mostrando o desinteresse que produtoras passam a ter com suas estrelas quando estas já não atendem a demanda dos ideais propostos socialmente para seguirem comercialmente em evidência.
Veronika Voss percebe o tempo influir em sua carreira e somatiza problemas que a impedem de protagonizar filmes. Há quem a respeite – ou finja, por erudição – não a escalando para papéis secundários com a desculpa de que ela não pode se submeter a eles. Essa rejeição influi em sua saúde debilitada, ela mantém-se internada sob os cuidados de uma médica bestial. É estabelecido um vínculo por dependência, com sujeitos dominados, asilados em decorrência da sanidade. É uma crítica bastante particular a condição histórica do país e sugere uma identificação projetiva com sua estrela que se assiste no cinema e se percebe em conjunção análoga, esquivando-se por censura.
De estilo bastante particular, a maneira com a qual o filme fora fotografado contribui efusivamente com a dinâmica dos cortes viscerais, como se as resoluções buscadas durante a projeção não exercessem a função de relevar os acontecimentos impiedosos sobre sua personagem principal, mas dar respostas afirmativas que visam intensificar o drama. É para ser um diagnóstico de um horror pessoal.
Escrito por Fassbinder juntamente a Pea Fröhlich e Peter Märthesheimer, O Desespero de Veronika Voss é uma constante sequência de cenas que elevam a grandeza do cinema autoral do diretor. Somos surpreendidos cena após cena e nesse arco de suspeitas e interesses, o jornalista impetuoso Robert Krohn aparece como vítima absorvendo a condição de Veronika internada devido a um vício: a morfina. Nessa clínica, constituída assustadoramente branca, pacientes são colocados sob tratamento intensivo para vencer a dependência pela droga – e a forma de tratamento levanta outras questões que não só visam a cura, mas o acondicionamento.
Repleto de reviravoltas e com um desenrolar intrigante, O Desespero de Veronika Voss é um trabalho instigante na carreira de Fassbinder, denunciando a perversidade através do cuidado e a redoma das intenções ao redor do zelo. O roteiro explora existencialismo relevando as consequências das ações e através de um olhar austero a ambição de uma vida dedicada a arte e tomada pela recriminação. Com atuações poderosas, sobretudo de Rosel Zech, o longa é um intenso estudo sobre relações humanas e os assuntos que o permeiam no ato em que a moral e a ética ruíram. E a liberdade almejada? O rompimento dessa busca se dá na perspectiva do acalento do vício. É bem mais fácil ser regido do que lidar com a falta, e, assim, juntamente a alguns sensos, a protagonista desaba e o filme resplandece.
Ooo galera, valeu. 🙂
Pois é, Cristian. A equipe está trabalhando bastante e posso adiantar que virão mais.
Nós temos falado BASTANTE de clássicos novamente e vem MUITA coisa boa e pedida há tempos por vocês por aí.
Caraio o site melhorou mesmo...séries, críticas de filmes importantes...
Deu um gás legal
Só ta faltando crítica para algum Tarkovsky.