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Críticas

Cineplayers

As agruras do tempo presente.

8,0
Bastam algumas iniciais trocas de palavras entre mãe e filha e alguns prematuros enquadramentos para que se tome consciência de que Depois da Tempestade (Umi Yori Mo Mada Fukaku, 2016) é um filme maduro. Mas o que vem a ser um filme maduro? Decerto algo há de se tomar da relativamente extensa obra de Koreeda, ou, se colocada ao lado de filmografias ainda mais  robustas e a quantidade de filmes não poder então comportar um parâmetro, que não se negue o seguinte: o japonês é um autor. Pinta uma mesma problemática com raízes de outras profundidades e contornos, mas a espinha lhe permanece a mesma: é um Ozu contemporâneo. E pelo seu tronco já calejado de uma sensibilidade de fonte aparentemente inextinguível, por isso fala-se de maturidade. Maturidade como presença dessa autoria que é ao mesmo tempo contornada e preenchida pela firmeza emocional do tratamento à unidade de mil faces que é seu tema – a família, por mais destroçada que ela esteja.

E de fato, assim como o foi com Ozu, não prevalece para seu reinventor necessidade de arroubo estético algum. Não há grandes closes com rostos e bustos ululando ao centro do quadro, tampouco simetrias arranjadas pelo plano típico que eleva (ou melhor: rebaixa) seus componentes à altura do tatame. O enxugamento é ainda mais simples, como que para lembrar-nos que há uma história e nada mais. Mas para essa história que amadurece, para o fruto cujo interior toma tempo para ficar mais denso e mais amargo, cortar de um rosto para outro pode trazer à tona uma década de ausências, de pequenas batalhas e de silêncios. Entre um curto diálogo feito de mãe para filho, mostrar o rosto da ex-mulher é desfazer um nó, desestabilizar o arranjo sentimental conseguido às custas de um túmulo que se achava já há muito tempo enterrado. A aparente falta de rebuscamento estético retira o complemento formal gritante de certos cantos para fazer regurgitar aquilo que bastou à palavra e a um rosto para materializar: presente, passado e futuro.

Se os ''modernos'' já haviam exposto e reiterado, sobretudo Antonioni com seu Profissão: Repórter (Professione: Reporter, 1975), a condição sobre aquilo de que o homem não pode fugir – de si mesmo –, o que a disponibilidade maldita de Koreeda em tratar sobre famílias provoca é uma aceleração de fluxo com o adicional de um ultimato: não há escape para si nem para as coisas como chegaram a ser, e o que/como se é, o é em grande parte por conta dos que vieram antes de nós. Das possíveis contas a se pagar por viver no presente, a pior é estar exatamente espremido entre os anseios do passado, tudo aquilo que queríamos ser e o que queriam que fôssemos, e os sonhos do futuro, ou para onde localizar os desejos a partir de então. E se os homens e mulheres estilhaçados sempre aparecem com filhos, é a princípio para colocá-los em xeque, fazê-los confrontar a si mesmos através dos pais que já tiveram, estejam estes mortos ou não, e que agora são, tomam o lugar – ou não devem mais ser à maneira do presente?

Dos perigos e grosserias que a generalização acarreta, espera-se entretanto extrair ao menos um fruto: são as relações indigestas e de ruptura-síntese entre o indivíduo e as representações de uma coletividade (família, sociedade) que delineiam certa presença dramática no cinema japonês como um todo. Mas, pode-se perguntar, invariavelmente, não é de entraves de uma mesma natureza que se constitui qualquer problemática, em qualquer lugar do mundo? Ora, com expressões diferentes, guinadas e tons diferentes, decerto sim. Tudo pode ser levado a parecer com um conflito entre um ''um'' e um ''todo''. Estabeleço contudo uma pequena diferença, e que retoma a mesma nomenclatura da maturidade para tomar posição favorável a Koreeda: se um filme de mesmo roteiro ou argumento fosse entregue a um diretor brasileiro, também aceitando, aqui, as distorções que o ato de generalizar pode ter, as chances de que se tornasse uma obra exclusivamente sobre tal tema, de que a apropriação de sua essência enquanto texto a ser tornado visual se tornasse um inchaço visível com fins de problematizar uma questão, um quesito particular que de repente se torna grande assunto de conhecimento e inferência social – as chances, enfim, de que a mais singela história de um homem que tem de lidar com o fantasma do que nunca foi e de tudo o que precisa ser daqui pra frente, se tornar um filmão problematizador seriam quase máximas. Por isso se fala de maturidade: o sentimento de um autor cuja obra está encerrada ali, embora não fechada, e que não precisa estabelecer pontes para movimentar, tocar e abrir um rasgão a partir de uma pequena família, somente para torná-la todas as famílias do mundo. 

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