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De Olhos Bem Fechados

(Eyes Wide Shut, 1999)
8,2
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891 votos
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Críticas

Cineplayers

Verdade e consequência.

10,0

A mentira é o cimento que ergue a sociedade. Todas as relações humanas só são possíveis com a presença da falsidade, uma vez que a verdade, nua e crua, quebraria as engrenagens que fazem estas conexões funcionarem. Isso pode ser aplicado a cada qual dos convívios, seja numa relação de amizade, seja na comunhão de um matrimônio; todos precisam de máscaras para ocultar realidades intrínsecas, pois há pensamentos, desejos e ambições pessoais que, se compartilhados ao próximo, romperiam o elo que une as criaturas. A sociedade, portanto, para funcionar devidamente, camufla qualquer instinto íntimo que possa existir naqueles que a compõem, e isso se faz realmente necessário, pois o ser humano jamais conseguiria compartilhar de uma plena interação caso se despisse de quaisquer fantasias que venham a esconder seu âmago.

Querendo ou não, somos obrigados a manter os olhos fechados para que a sociedade possa ser impulsionada para frente, para que nossa pessoalidade faça apenas parte de um sonho, de um devaneio, de um momento em que somente a inconsciência possa ministrar nossos sentidos. Stanley Kubrick entoou seu canto de cisne apresentando sua visão definitiva sobre os homens, estes que sempre procurou capturar em seu lado mais obscuro, fazendo com que seus personagens sejam defrontados às suas próprias personalidades, quase sempre imersos em situações extremas, improváveis, que lhes exigiam a nudez de tudo àquilo que, de um modo ou de outro, os inquietavam e afligiam. Em De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), temos o homem e a mulher, unidos através de alianças de fidelidade, compartilhando de uma mesma convivência amorosa e social. O destino, no entanto, arma contra esses dois seres, fazendo com que o véu que antes vestia aquela vida perfeita seja inteiramente rasgado e atirado ao lixo.

Inspirado no romance “Traumnovelle” de Arthur Schnitzler (aqui no Brasil traduzido como “Breve Romance de Sonho”), o filme consiste em narrar a história de um jovem e rico casal americano, membro da alta classe da sociedade. Ele, o Dr. Bill Harford (Tom Cruise); ela, a ex-curadora de museu Alice Harford (Nicole Kidman). Juntos, mantêm uma vida impecável, aconchegados em uma residência confortável e pais de uma linda criança. Tudo brilha em suas vidas, até que, convidados a participar de uma elegante festa promovida por um amigo, são submetidos a pequenas interferências do destino. Ele é abordado por duas provocantes modelos; ela é flertada por um húngaro mais experiente. Ambos, mesmo sem consumarem uma traição, se deixam levar por aquelas charmosas figuras que os paqueram. Na noite seguinte à festa, entorpecidos pelo efeito de uma droga, passam a atirar, um na face do outro, pensamentos reprimidos. Ela, por fim, aplica nele um golpe fatal ao lembrar que, durante uma viagem feita por eles, sentiu uma forte atração sexual por um dos homens que vira no lugar, encerrando ao dizer que, se o desejo fosse compartilhado pelo sujeito, ela deixaria para trás tudo o que havia construído até então.

Partindo desse cruel efeito do destino, Kubrick acompanha a melancólica e solitária trajetória do Dr. Bill, agora em busca de autoconhecimento, de uma compreensão sobre seus pensamentos e suas vontades mais particulares, colididas com um turbilhão de questionamentos e incertezas ocasionados pelo ataque de sinceridade da esposa. O protagonista, portanto, é guiado por um caminho sem norte, onde ele próprio, através das experiências que irá enfrentar, deverá achar seu rumo pessoal, tentando enxergar novamente a luz no fim do túnel que lhe foi extraída. Afinal, é isso que Bill Harford quer: ter sua vida de volta aos eixos. Logo após esse diálogo explosivo entre o marido e a esposa, somos aprofundados única e somente na mente dele, bagunçada, reflexiva, e toda esta situação caótica tende a piorar ainda mais quando ele é confrontado com seus desejos íntimos, percorrendo uma trilha erótica através das frias noites de Nova York.

O diretor então nos mergulha num filme misterioso, atmosférico, e tais elementos são exaltados por visual soturno (bem como por uma maravilhosa trilha sonora) que se estende por entre toda a cidade americana, e esta parece sempre guardar algo de muito perigoso para nosso protagonista, fazendo com que a morte aparente espreitar entre cada esquina, cada rua e cada canto percorrido. É a Nova York da inconsciência, do devaneio, que se faz existente apenas no terreno da surrealidade. Bill Harford se vê agora inteiramente perdido, pois durante suas saídas noturnas, seus olhos, antes fechados, encontram-se abertos como nunca, e o mundo despido é mais perigoso do que ele pensa. Todas as coisas agora apontam para ele, jogam de acordo com seus pensamentos; tudo denota erotismo, sexualidade, desde um grupo de jovens baderneiros que o chama de homossexual até uma misteriosa prostituta que lhe desperta o interesse. A cidade agora se revela como um teatro dirigido pela própria mente do doutor, sempre se insinuando e sendo conduzida de acordo com os devaneios que lhe tomam a cabeça.

Durante sua jornada, Bill depara-se com eventos inimagináveis que mudam totalmente os cursos que traçara anteriormente. Temos um antigo amigo do médico servindo agora como fio condutor para introduzi-lo em algo surpreendente, que alterará definitivamente sua vida pessoal. Uma senha. Um traje. Uma máscara. Estes são os passaportes para implantar Bill num universo surreal, onde ele é conduzido até uma misteriosa celebração, organizada em uma finíssima mansão isolada do ambiente urbano. Naquele lugar são realizadas orgias sexuais entre convidados participantes da alta classe americana, devidamente mascarados e fantasiados, para que possam preservar a identidade que ostentam às claras. Esta obscura realização é a sociedade despojada do que antes a revestia, tendo seus calabouços abertos, expondo tudo àquilo para qual devemos fechar os olhos. Com esta cerimônia sexual, Kubrick fornece uma metáfora perfeita para o que vivenciamos todos os dias: tudo aquilo que mais queremos, mais desejamos e devemos esconder, para que todas as aparências mantenham-se sempre intactas.

Ao ser inserido novamente na realidade, o médico já não é mais a mesma pessoa; o ser que antes se guiava de acordo com a lógica e a explicação racional de tudo encontra-se agora devastado por uma ilusão, tendo sua antiga existência destruída por uma miragem. Essa metamorfose interna a qual Bill fora submetido apresenta a alegoria de que o casamento é sustentado pelo desejo, pelas fantasias próprias e do parceiro, pela satisfação de manter sempre pulsante a relação. Sendo assim, todas as aventuras noturnas encontram justificativa no novo ‘eu’ daquele homem, que agora compreende perfeitamente seu papel na convivência, e entende mais do que tudo a importância de ambas as dimensões, tanto de seus sonhos quanto de sua realidade.

E assim, Stanley Kubrick encerra seu último filme, acertando na decisão de não traçar um futuro definido para os protagonistas, embora esse realmente seja o preço a se pagar, pois tal como a mentira, a verdade também aguarda suas consequências. Sejam aquelas afirmações pronunciadas cruelmente pela mulher verdades ou não (pode ser que estivesse sendo sincera, mas também poderia ser um método encontrado por ela para ativar os ciúmes que antes o marido dizia não sentir), não saberemos, até porque, o filme jamais cede espaço para respostas fáceis. Sobre Bill e Alice, a única ciência que possuímos é a de que a vida daquele casal nunca mais será a mesma, e isso pode ser inferido como sendo algo bom ou ruim para o amanhã dos dois. Dessa forma, a mentira se mostra tão fundamental quanto a verdade; ambas doem de alguma maneira, entretanto também carregam a vontade de fazer as coisas funcionarem melhor, de manter nos eixos o que encontra-se em seu devido lugar. Então, pode ser que mais tarde aqueles dois superem tudo aquilo. Pode ser que consigam seguir em frente. São hipóteses subjetivas. Contudo, uma coisa é mais do que certa, depois que os olhos foram abertos e as máscaras retiradas, será impossível para aquelas duas criaturas, algum dia, viverem felizes para sempre.

Comentários (4)

Luís Henrique Rodrigues da Silva | domingo, 19 de Agosto de 2012 - 23:14

Eu interpretei o filme de uma forma completamente diferente. Eu acredito que a idéia do filme é exatamente de que tudo aquilo que estamos vendo é um sonho. Por isso o nome De Olhos Bem Fechados (o nome do livro, traduzido ao pé da letra é História de Sonho). Nenhum personagem acorda repentinamente nos últimos segundos dizendo "foi apenas um sonho", mas sente-se um alívio daquela imersão onírica depois da cena (linda) na qual Bill encontra Alice dormindo ao lado da máscara. É claro que existe toda a questão da psicanálise, dos instintos sexuais, mas quando você se atém à apenas um detalhe, não consegue enxergar o filme como um todo, e portanto, a verdadeira ideia deste.

Cristian Oliveira Bruno | segunda-feira, 25 de Novembro de 2013 - 15:09

Que filmaço!!!! Transborda sensualidade e parece sempre à ponto de sucumbir à si próprio!!! Grande obra de Kubrick e Cruise que mostra que, bem dirigido, é um bom ator!!

Raphael Aguiar | segunda-feira, 03 de Fevereiro de 2014 - 22:44

Ainda bem q eu não sou o único q ama essa obra-prima 😁

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