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Corrida da Morte - Ano 2000

(Death Race 2000, 1975)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Uma farra marginal e visionária da fuleiragem moral

8,5

Pilotos ganham tamanho e poder midiático estraçalhando transeuntes nas ruas em uma corrida nacional pelos EUA, num futuro semi distópico onde o entretenimento das massas continua a ser cada vez mais necessário para o controle de uma casta ultra elitista. E é com esse condicionamento frontal de roteiro que a fita se indignifica velozmente. É a mentalidade malandra e oportunista do Roger Corman em pauta. Aposta nesse método de exploração da violência como tesão/ópio do povo para manifestar seu cinema periférico e crítico.

De cara é interessante salientar as intenções do produtor Roger Corman. Muito vivo como sempre foi – e oportunista como poucos – recorrera à esperteza para aproveitar do momento propício e de discussões que ensejariam obras presentes e futuras. Uma espécie de verdadeiro fiscal visionário da bagaceira. Esta minha enrolação curta tem motivação. Rollerball – Guerreiros do Futuro (Rollerball, 1975) era um projeto em construção e como tal tinha elementos óbvios desta fita do Corman. Um protagonista antissistema; um mundo governado por corporações (ou um poder autoritário do estado) com objetivos escusos; manobra das massas pela bestialidade... Rollerball viria a propor estes tópicos, e Corman percebera que poderia se aproveitar disso criando sua própria obra com elementos similares e, obviamente, com seu arranjo a toque de caixa de uma produção de baixo orçamento que ele sabia muito bem como executar, porém também buscara um material base autêntico para chamar de seu nessa adaptação: “The Racer”, (1956), um conto de violência crítica de Ib Melchior. Dentro disto Corman aproveitara o embalo do marketing do endinheirado Rollerball para faturar em cima disso e lançando seu projeto dois meses antes, como é de usual gaiatice dele [ele fizera parecido em Carnossauro (Carnosaur, 1992) se usando do Jurassic Park - Parque do Dinossauros (Jurassic Park, 1993)]. Inclusive apostara em algo numa primeira monta até mais catastrófico e brutal, que seriam as corridas e morticínio avulso de transeuntes nas ruas. É o agarramento de duas bases ao puro exploitation. Aqui numa referência ainda mais idiossincrática (essa palavra é sucesso e vagabundamente sempre a uso quando creio que seja oportunista para tal) seria o fato dele se remeter ao carsploitation. Este subgênero dentro doutro, que trazia o significado de tramas objetivas de brutalidade – e simplicidade sim – com a ação desenvolvida em carros envenenados sobre estradas urbanas ou não, carregadas de sangue e sexo. Carros usados como armas e sendo figuras cativantes nas jogadas por eles mesmos.

E é dentro dessa trama de morbidez cínica no talo via atrocidade e distopia, que é tanto incômoda quanto divertida, que o material se propõe a existir. Enquanto o supracitado Rollerball prima por sua crítica embalsamada por uma seriedade frontal, Corrida da Morte - Ano 2000 segue pelo caminho da sátira política, moral, social e cultural. O sarro e a farra. A carne humana servindo como forma de pontuação; ou seja quanto mais se matar, mais pontos os pilotos ganham. Ora, façam a reflexão de uma cria marginal dessa época vir com essa prerrogativa, com pontuações mais altas para crianças, grávidas e idosos – a bizarrice da cena do asilo serve a esta estratégia – e como seria aceita? O impacto disso. Este material existe como sátira política como fora já citado, mas a serviço do entretenimento interno para com o trato dos personagens tanto quanto para com o sucesso e respaldo popular que a obra poderia ensejar fora das telas. É a ironia deste troço, que se utiliza do excesso para vender uma ideia de ode à selvageria para com a qual já estamos sendo dispostos historicamente de distintas formas há muitos séculos. Se existe a terminologia do pão e circo, vamos apenas modernizá-la. A fita faz isso sem o menor pudor, utilizando inclusive a temática da manipulação midiática como forma de obtenção de divertimento e controle.

Tecnicamente é sensacional e sensacionalista. Em seus acertos e vacilos – aqueles erros de continuidade que adoramos – se apresenta bem ao prazer, e só não possui barrigas inúteis porque sua curta duração não permite. A adversidade orçamentária proíbe grandes arroubos nas perseguições e destroçamentos, mas a compensação vem com originalidade e grosseria. Um dos artifícios, fatalmente usado, é a diminuição do frame rate das imagens para dar uma ilusão de maior velocidade aos carros. Um velho truque em certo aceno aos filmes com ação nos anos 20 do mestre Buster Keaton, além doutras referências. E contando com um uso a posteriori do esquema – abusivo e exploratório do carsploitation – de seu primo mais famoso Mad Max (Mad Max, 1979). O negócio aqui é sujo, seboso, tem atuações canastronas, cenários pintados, e uma agressividade trash com o uso clássico daquele sangue imbecilmente falso que que é uma beleza pra casar com esta proposta doente; aqui um elogio ao trabalho de direção do Paul Bartel. A fita nas suas acelerações e estragos seu maior apego popular que encaixa tenazmente na sua conjuntura de escolha política. Um tempo de distopia necessitar-se-ia do exagero das relações humanas para impactar os transeuntes que decidissem ir ao cinema assistir a esta coisa bandida.

Nisso somos levados a entender o absurdo da verossimilhança interna que existe somente como fiapo para manobras de carro e atropelamentos escusos – sempre com a matéria política como pano de fundo –, já que Corman queria lucrar e este tipo de coisa-fílmica o interessava. Isto posto, nos traz a questão de uma das vantagens em se ter uma produção independente de baixo orçamento (não vou entrar no mérito de que isso é lindo; não é. Crer nisso sem discussão sobre as condicionantes problemáticas de cada caso não passa de elitismo) é a liberdade de ação. Obviamente que ter mais grana pra se resolver seria melhor, mas sem um risco financeiro maior (existe risco de qualquer jeito), a obra tem mais liberdade para arrotar estupidez e apostar nos absurdos do exploitation para se vender, afinal a década de 70 preconizaria grandes materiais neste sentido provando que esse caráter subversivo brutal era desejado por parte da população. Por isso era importante fazer os carros serem personagens e que fossem a esculhambação mor do planejamento visado.

Somente 5 carros competidores. Frankenstein sadomasoquista. Ambuiguidade dos animais. Stallone com metralhadora? Frankenstein presidente? A marginalização dos personagens foge à regra somente da demanda econômica, abraça a pauta da moralidade de braçada. Ora, são pilotos e mandatários graúdos que são comandados e comandantes da corrida mortal. São crias e criadores de um sistema escroto. Os primeiros compactuam a favor dele enquanto se digladiam entre si, talvez não percebendo que acabam, sendo parte do moedor de carne programado pelos segundos. A venda de mitos e oportunidades grita mais alto agarrada com o poder. Por isso o protagonista Frankenstein (David Carradine) é digladiado por Machine Gun Joe Viterbo (Sylvester Stallone). Duelam por velocidade, lascívia e poder. Carradine sendo o canastrão mor por trás de sua misteriosa vestimenta sadomasoquista de fundo de quintal, que serve diegeticamente para nos mostrar mais uma faceta da proposição midiática de controle ao apostar na mitificação exacerbada de uma figura para fazer o programa todo ainda maior em sua apelação. E obviamente que o combatente óbvio a ele seria uma versão mais estúpida e esculachada dele mesmo, como o é o Viterbo, com um Stallone pré Rocky Balboa e totalmente livre para atuar como se pede uma obra do exploitation: com exagero over no grau. De resto temos as figuras femininas que ora servem como vitrines de nudez, ou em empoderamentos tortos como na figura da piloto Jane Calamidade (Mary Woronov), que tem sua aura de independência dos machos de plantão. Tudo de forma muito bruta, mais parecendo um rascunho de personagens, que são delineados de forma simplória, mas que em momento algum deixam de ser funcionais a proposta. Por isso mesmo que prestam desta forma. Quanto aos carros em si, conseguem passar a ideia de gênese do colorido de sua época tanto quanto em serem objetos de desejo e destruição. Possuindo presença nisso. Diante da falta de verba, chega a ser um achado os formatos dos veículos, algo que se esvairia nos filmes subseqüentes da saga, que buscavam proposição tanto sujas quanto modernas e sérias, mas diminutas em personalidade.

A influência de Death Race 2000 é desenvolvida, visto que possui uma sequência/refilmagem direta [Corrida Mortal 2050 (Death Race 2050, 2017)] – também produzido por Roger Corman – e mais um reboot [Corrida Mortal (Death Race, 2008)] com duas prequências (prequelas) próprias [Corrida Mortal 2 (Death Race 2, 2010) e Corrida Mortal 3: Inferno (Death Race: Inferno, 2012)], e uma sequência direta [Corrida Mortal: Anarquia (Death Race: Beyond Anarchy, 2018)] – estes últimos todos com a produção executiva de Corman. Além dos seus próprios materiais fora um dos responsáveis pelo crescimento do próprio carsploitation; filmes com jogos assassinos; e jogos de videogame com similar estrutura como o famigerado Carmaggedon (1997, Stainless Games), entre elementos outros da cultura pop. Esse charme – e tesão – pela barbaridade vista nesse tipo de material ainda serve de condicionante social da violência pela violência. Tanto que o caráter de crítica política sistêmica fora sumindo nas fitas posteriores, sobrando a ignorância, não que isto seja de todo ruim, mas é assaz sintomático quando mesmo com liberdade criativa os materiais acabam por incorporar os elementos mais óbvios – afinal, destes filmes só um deles teve a devida atenção para o cinema, já que os seguintes são exemplares do modo direct-to-the-video, onde existe mais liberdade por motivos já explicitados, mas escolhem focar cada vez mais na obliteração da carne e na exibição da mesma quando nua em erotismo. Nisso que ainda reside o charme do original. Não somente assumir como obra delinqüente de exploração moral, mas aceitar a farra que isto pode propor sem esquecer da sátira em como se apresenta como tal, que acaba jogando esta exploração de volta ao expectador. Gostamos tanto de violência ao ponto de haver uma possibilidade de metamorfose tal que nos alienaria de tal maneira a aceitarmos o pão e circo? De certa forma, meio que já aceitamos tal condicionamento mesmo que sob outras égides. Esta alienação chegou? E o Frankenstein virou mesmo presidente ao encerramento? Nós entorpecidos ficamos no regozijo dessa farra/sátira/carsploitation. E conseguimos dormir e roncar tranquilamente – pelo menos aqueles que aceitaram a exploração dentro e fora das telas.

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