8,0
Quando Guilherme Fontes entrou na sala de cinema onde estava e discursou sobre o lançamento de Chatô, o Rei do Brasil, uma daquelas lendas folclóricas do cinema nacional estava finalmente caindo; sim, o filme estava pronto para ser lançado comercialmente, depois de desgastantes vinte anos de produção - começou em 1995 -, entre processos e questionamentos sobre seu orçamento. Sua empolgação era óbvia, afinal, por suas próprias palavras, ele finalmente estava satisfeito com o resultado a ponto de poder exibi-lo. Minha preocupação também era válida, pois sabemos que filmes que se arrastam por longos anos, quando não cancelados, acabam tendo o seu resultado final comprometido pela conturbada trilha que havia percorrido até então.
Eis que, para a minha surpresa, entre alguns membros da produção sendo homenageados in memoriam durante os créditos (foram vinte anos, vale reforçar!), estava meio chocado com o que havia acabado de ver; Chatô era, sim, um bom filme. Um pouco confuso, é verdade, bastante agitado, quase carnavalesco, bem espalhafatoso, satírico, "último representante do movimento tropicalista", como o próprio Fontes faz questão de dizer, aos risos de satisfação.
Baseado no livro homônimo de Fernando Morais, a história visita a trajetória de Assis Chateaubriand (Marco Ricca), desde sua origem no jornalismo até seus últimos momentos de vida, passando pelo jornal, pelo rádio e pela TV Tupi e todos os escândalos que protagonizou. Lendo a sinopse, parece um daqueles filmes lineares que a todo momento engrandecem o ser, correto? Errado. O filme sempre deixa claro que seu personagem é um tremendo filho da p***. Sua trajetória é contada, mas jamais venerada.
Narrativamente, é um trabalho ousado - seu primeiro grande acerto. Esqueça o esquema de início, meio e fim bem definidos, pois em Chatô isso tudo se mistura em prol de um desenvolvimento ágil e que jamais soa cansativo. Na vida, as vezes fica difícil dizer onde tudo começou, não é mesmo? Chatô é assim, um iô-iô narrativo que acaba parecendo mais complicado do que é na verdade.
Suas idas e vindas acontecem em um emaranhado de situações extremamente engraçadas - seu segundo grande acerto, um humor preciso e bem afiado - que são ligadas através de um julgamento totalmente lírico sobre sua vida, com um cosplay de Chacrinha bizarro que reforça cada vez mais a loucura que é aquilo tudo. As situações que mostram quem ele era, o que construiu, onde chegou e como afundou são apresentadas sem muita preocupação com a lógica, em formato quase de esquetes - seu terceiro grande acerto, dar a isca para o público pescar, e não dar tudo já mastigado para ele ruminar. Sua história nunca deixa de fazer sentido como um todo.
Chatô era uma espécie de Charles Foster Kane brasileiro, mulherengo, inescrupuloso, capaz de fazer alianças rapidamente e desfazê-las ainda mais instantaneamente de acordo com os seus interesses. Convenhamos, é uma comédia, mas o assunto tratado aqui é sério e bastante atual. O filme faz rir - e muito, quero deixar isso bem reforçado, é uma porra louquice atrás da outra -, mas o que fica na cabeça depois que ele acaba é esse leque de discussões sobre a mídia e seu poder de manipulação que sempre aconteceu. Claro que o filme não considera a internet, até porque na época ela não existia e a mesma acabou influenciando diretamente nesse tipo de debate, mas não há como ignorar sua mensagem contundente e relevante nos dias atuais. É a comédia de conteúdo, pouco vista hoje no Brasil - seu quarto grande acerto.
Agora, a pergunta que não quer calar, o filme valeu todo o dinheiro nele investido? Sim e não. Não porque a desorganização acabou atrapalhando o cronograma da obra, encarecendo-a e gerando desperdícios. Excessos também. Se Chatô conseguia patrocínio para o seu jornal através de prestígio, é inegável que Fontes também usou e abusou de seu nome para atrair investidores para o filme. O dinheiro entrou rápido e a produção foi gorda. Até mesmo Coppola desembarcou no Brasil, posou de bermuda e descalço ao lado de Fontes, totalmente a vontade. Sua consultoria foi rápida e cara; se útil, não tenho como julgar. As locações, gigantescas. Os figurinos, estupendos. É um filme de ponta, isso é indiscutível, mas as coisas foram se complicando.
O dinheiro acabou valendo a pena porque, querendo ou não, o filme acabou ficando pronto e é bom. Lotado de personalidade, é uma parte da história do cinema nacional acontecendo, que irá gerar documentários e muito falatório sobre ele; ver os atores ao vivo, mais velhos, e em tela, bem novos, é interessante e conflitante. Poucos filmes oferecem essa experiência. Marco Ricca está possuído e inesquecível na pele de Chatô, assim como Andrea Beltrão encarna uma daquelas femme fatales maravilhosas que sabemos que é perigosa, mas que jamais deixaríamos de nos aproximar tendo a oportunidade tamanha sua sensualidade e poder de sedução. Paulo Betti faz um Getúlio Vargas bastante caricato (o que, nesse caso, é bom!) e Gabriel Braga Nunes, chamado ao vivo de antagonista por Fontes mas que está longe de ser um, faz um belo trabalho como braço direito de Chatô.
O público em geral vai odiar, pois não é um filme nem um pouco convencional e sua mensagem precisa ser absorvida e degustada, não apenas expelida em um spot de TV. São poucos filmes que acabam tendo uma história própria grandiosa assim, e todos eles acabam valendo a pena no final. Quem é cinéfilo vai amar, pelo modo despreocupado e confiante com que o enredo é contado, com toda a curiosidade técnica do encontro de gerações em tela, além da óbvia realização de ver todo um mito se tornando realidade, mesmo que seu lançamento esteja tímido e um pouco ofuscado pela chegada do último capítulo de Jogos Vorazes no mesmo dia.
Bom, quando questionado sobre essa janela, Fontes disse que não se importava com isso, pois eram públicos diferentes e que confiava no seu filme. Confiar ele pode, mesmo que dê uma deslizada aqui ou ali entre quebras de eixo desnecessárias e com certas gorduras, é um trabalho bem competente e surpreendente devido a tudo o que o rodeou. Se o tempo poderia ser um inimigo para Guilherme Fontes, ele provou que sabia o que estava fazendo, pelo menos com o que tinha para contar sua história e fazer o seu cinema se tornar uma por si só.
Nelson Rodrigues tinha razão, muita razão.
Vi ontem (lançou no Netflix) e é bom sim, mas muito espalhafatoso, grita o tempo todo com o espectador, torna-se cansativo, e como a crítica citou, é gorduroso. Mas é bem divertido, sem dúvida.
O público em geral só gosta de blockbusters que quase sempre são ruins. Chatô é obrigatório para quem é cinéfilo.
Crítica perfeita, definiu o filme com maestria!