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Críticas

Cineplayers

A salvação pela arte.

8,5

O filme-ensaio dos cineastas responsáveis por uma das (muitas) obras primas do cinema italiano, Pai Patrão (Padre Padrone, 1977), é outra obra que mostra, de maneira exemplar, o humanismo forte e impactante desses dois irmãos com mais de seis décadas de cinema sempre preocupados com o lado sensível de pessoas normalmente expostas às agruras de uma vida embrutecida por fatores sociais diversos. Era o caso no auge de popularidade deles, onde no filme supracitado contavam a história de um garoto obrigado a deixar os estudos por um pai pastor de ovelhas truculento e ignorante e que só encontrava uma forma de combater seu genitor através da cultura, tanto quanto aqui, onde um grupo de presos em uma prisão modelo começa a ver como única saída do universo de violência e tédio a possibilidade de encenarem a peça Júlio César, do bardo inglês William Shakespeare.

César Deve Morrer está longe do modelo clássico que uma história do gênero proporia segundo as necessidades de mercado - a apresentação de cada caráter, as dificuldades, o preconceito, alguma relação a ser desenvolvida, nada existe aqui além do puro fato – baseado em fatos; os presos atores realmente eram condenados, que os Taviani conheceram quando os mesmos encenavam o segmento do Inferno de A Divina Comédia. A intensidade da atuação os atraiu e após um dos presos dizer para os irmãos que eles jamais teriam idéia de como aquelas palavras de Dante Alighieri faziam sentido para eles, os mesmos decidiram pedir autorização para filmar uma peça – e a peça de Shakespeare, pelo sua história de conspiração, traição e assassinato, de certa forma tem tudo a ver com a vida daqueles homens condenados por tráfico, assassinato, atividades mafiosas...

Esse tal de fato em si é encenado como si fosse mais uma ficção – os atores interpretam um fragmento de sua própria história, com um roteiro praticamente todo guiado pelas falas da peça e por ocasionais comentários irônicos ou confessionais sobre a composição do personagem e a relação do ator com ele. Logo a prisão da Ribibbia se transforma em um lugar de força imagética tão forte quanto a Roma que sempre é imaginada durante a encenação da obra. Filmado a maior parte do tempo em preto-e-branco, os irmãos escrevem na luz toda a potência cinematográfica da obra – o close nos olhos enlouquecidos de Brutus, do olhar amedrontado de César ou a postura vingativa de Antônio são interpretados com verdade e fúria pelos detentos, com alturas de câmera e composições de quadro mutantes, onde o movimento não é criado apenas pela câmera, seus movimentos e seu foco, mas também pela movimentação dos atores, que criam diferentes percepções geométricas e anatômicas com seus constantes reposicionamentos. A luz é outro fator; banhos de luz branca são constantes, talvez com o objetivo de inundar o espectador com a mesma febre furiosa com a qual os atores vão desempenhando seus papéis ao longo do tempo.

É perceptível a declaração dada pelos Taviani de César Deve Morrer não ser um filme cerebral, mas uma viagem. Lentamente, deste misto de ficção e documento, de um filme que se desenrola em dois tempo-espaços diferentes – o real, onde os diretores e a companhia realmente ficaram meses encenando, e o cinematográfico, contado por elipses, mais interessado na verdade por trás da representação e da criação. E na relação de cada um de nós com a arte.

O filme, além de ganhar o Urso de Ouro do Festival de Berlim, também contou com a vitória de seus atores terem a oportunidade de serem homens reintegrados – Salvatore Striano, o ator que interpreta a si mesmo interpretando Brutus, teve a pena perdoada para poder tornar-se ator de teatro e cinema. A visceralidade despejada, de tão deveras impressionante, cativava guardas e colegas de cela. A fotografia, mais preta e branca do que cinza, ressalta os corpos endurecidos e os rostos enrugados, mas também os olhos brilhantes, que passam a se interessar por arte, história e dramaturgia. Por trás de cada um daqueles homens – dos quais muitos cometeram crimes hediondos – existia um indivíduo tentando se comunicar de uma maneira violenta e que conseguiu canalizar todo seu impulso, toda sua raiva, toda a frustração em seus respectivos personagens.

“Desde que eu descobri a arte, essa cela tem me parecido uma verdadeira prisão”, conclui um dos presos depois de voltar para trás das grades depois de encenar a peça. O corpo pode estar preso, mas o espírito, agora que viu uma luz no fim do túnel, está mais vigoroso e vivo do que nunca. Essa facilidade tremenda que os Taviani tem de chegar até o seu público, de nos fazer ter certeza, mais de uma vez, que educação é tão importante quanto alimento, que consciência e conhecimento importam tanto quanto necessidades físicas, marca uma carreira que, senão perfeita ou ao menos constante, deveras impressionante em seu propósito profundamente social, rasgando a fronteira entre ficção e realidade para mergulhar fundo nas angústias de um certo grupo de indivíduos, que quando dá certo, não tem muitos concorrentes (ao menos, ainda vivos) dentro do campo temático onde escolheram trabalhar.

É uma dupla que leva muito a sério a tal da “política autoral”, de escolher um tema e leva-lo em frente, propor reflexões temáticas e estéticas, repensar o belo e o grotesco e que conseguiu, há muito, deixar sua marca indelével na história do cinema. César Deve Morrer só mostra que assim como aqueles presos que querem ser levados a sério em seu trabalho e sua paixão redescoberta e assim como o imortal texto de Shakespeare, os Irmãos Taviani permanecem mais vivos e relevantes do que nunca. Com oitenta anos, ainda filmam com o vigor e ritmo de jovens, com uma compreensão e empatia com o lado íntimo e pessoal que só a idade traz; essa é a tal da melhor idade, de mais duas vidas, dentre tantas, salvas pela arte.

Comentários (5)

Patrick Corrêa | sexta-feira, 12 de Outubro de 2012 - 19:26

O texto está ótimo mesmo e o filme é realmente ótimo.
Só uma correção: o sinônimo de pai é genitor. Progenitor é sinônimo de avô.

Guilherme Santos | terça-feira, 05 de Março de 2013 - 12:28

o nome desse filme é muito engraçado, coitado de cesinha

José | domingo, 01 de Novembro de 2015 - 15:49

Na verdade progenitor está correto, pai ou avô de um antepassado. Genitor é que tem um significado mais restrito, mas ambos são sinônimos. Ademais, os textos do Brum são dos melhores que leio na Internet, parabéns.

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