Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Herzog e a arte em processo.

8,0

A quem não está habituado às técnicas documentais de Werner Herzog, pode haver algum estranhamento logo nas primeiras cenas de A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams, 2010). Enquanto o cineasta e sua pequena equipe acessam ao interior da caverna Chauvet, na França, acompanhando pesquisadores e cientistas em uma expedição pelo mais antigo registro de pinturas pré-históricas de que se tem notícia, o alemão, com sua tradicional narração em off que acompanha as imagens, pede desculpas pela presença da equipe de produção à frente das câmeras – dando ao filme, assim, a liberdade de utilizar  desde sombras e equipamentos de iluminação até planos que geralmente fariam parte de imagens de bastidores, e às vezes indo ainda mais além, fazendo em tela uma aproximação entre as restrições existentes e as soluções encontradas por ele para driblá-las. A quebra do limite cênico, embora pareça consequência da restrição espacial do terreno explorado e das regras que precisam ser seguidas para a captura das imagens (andar em linha, não pisar fora da estreita plataforma de metal construída sobre a terra, etc, o que praticamente impossibilita ocultar equipe e equipamentos), também ajuda a identificar a importância que o processo, que a expedição de filmagem e o próprio fato de estarem registrando em vídeo pela primeira vez o interior deste local histórico, possui para a experiência e para a discussão propostas.

A presença de Herzog em seus documentários, por si só, não é nenhuma novidade - nem a diluição entre processo e produto, registro e filme, uma característica dos documentários do cinema verdade, embora sejam utilizadas neles de forma diferente da que faz o alemão em suas obras. Herzog participa ativamente como personagem, com voz e corpo, desde suas experiências iniciais com o gênero - em uma de suas primeiras verdadeiras obras-primas documentais, O Grande Êxtase do Escultor Steiner (Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner, 1974), alguns dos melhores momentos já ocorriam justamente quando o filme voltava-se à reação de Herzog à história registrada, como quando o diretor, no topo de uma montanha, encontra-se atônito ao avistar de longe o acidente de seu protagonista, um saltador de esqui, sem poder interagir com a ação nem saber o que realmente aconteceu. Mas talvez nenhum de seus filmes seja tão intrinsecamente pensado para esta diluição, para a existência de um processo de registro acontecendo em cena - não tanto enquanto efeito audiovisual, embora ele exista, mas enquanto dispositivo de discurso; um discurso que, aqui, abrange seu próprio fazer artístico para propôr uma reflexão sobre a expressão do homem, os efeitos do tempo nela e a importância da arte para a interpretação dos períodos da história e das mudanças comportamentais e culturais da humanidade.

Mas não é na busca de conclusões sobre estas questões que estão as intenções de Herzog, que utiliza-se novamente do documentarismo como forma também de explorar seus temas favoritos, vistos tanto nos filmes documentais quanto em sua obra de ficção: os sonhos grandiloquentes e as particularidades excêntricas dos seres humanos em choque com a vastidão, as dificuldades e os segredos da natureza terrestre. Ao conseguir liberação do Ministério da Cultura francês para registrar as pinturas encontradas na caverna Chauvet, mantidas como um tesouro trancado por grossas portas de ferro durante quase duas décadas, Herzog mira sua lente para o que é considerada a primeira evidência de arte humana - e, por isso, o princípio da existência do homem moderno, capaz não apenas de encontrar meios de sobreviver em nosso mundo, mas também de expressar sua interação com ele, seus sentimentos conflituosos e particulares perante a ele, tornar as experiências vividas em um pedaço da história que permanece marcado como tatuagens nas rochas das cavernas - um processo que nos dias de hoje, no artificialismo do mundo moderno, como insinuado pelo surreal epílogo filmado em uma Usina Nuclear existente próximo da caverna, ocorre na maior parte dos casos virtualmente, exatamente como faz Herzog com sua visita àquele local para registrá-lo em um filme digital.

Este choque faz de A Caverna dos Sonhos Esquecidos um filme bastante particular na obra de Herzog, embora ele siga basicamente as características e intenções de seus demais documentários. Depois de explorar alguns personagens de áreas científicas (que, como em todo filme de Herzog, são bastante incomuns em suas observações e idiossincrasias) para a contextualização da caverna, dando a dimensão necessária à sua importância enquanto espaço natural e também histórico e cultural, Herzog propõe um choque narrativo e estético para o qual abandona a câmera amadora com que filmava a expedição e, com um equipamento de alta definição 3D, retorna ao local para propôr um passeio incidental e quase espiritual (como pontua meio que grosseiramente um dos personagens da segunda parte) por entre vãos e paredes da caverna, aproximando-se tanto quanto possível daquelas imagens tão simbólicas e emblemáticas (dentre elas em especial a única figura humana retratada junto aos demais animais, um misto de mulher com touro que até então, por estar localizada em um ponto inacessível com a pequena câmera amadora, era vista apenas parcialmente - por sacanagem de Herzog ou não, momentos antes uma personagem fala ser uma pena o cineasta não poder mostrar completamente essa pintura em seu filme, o que possibilita a ele mais uma vez fazer da apresentação de uma solução para o problema uma etapa do próprio filme).

O que vemos em tela se torna mais do que um filme documental sobre uma caverna que contém as mais primitivas pinturas conhecidas da arte humana, embora, para tanto, não fuja muito disso. A grande diferença de um suposto documentário tradicional sobre o tema para um filme como este A Caverna dos Sonhos Esquecidos é que, consciente da arte como algo que existe para além de sua superfície estética, que existe como resultado de um processo de vivência, Herzog nos permite a partir das imagens da caverna não apenas fazer um passeio pela essência da expressão artística, mas também nos consolidarmos como espectadores de um filme que existe como um processo de si mesmo — que, mais do que os fatos ali descobertos, filma o homem entrando em contato com estes fatos, transmitindo suas dúvidas e suas convicções sobre a arte e a existência humana em um encontro vivo e autorreflexivo, como que olhando para si em um grande espelho histórico. O filme de Herzog, desta forma, não parece muito diferente das representações pintadas nos muros da caverna, embora aqui exista uma autoconsciência explícita que nos possibilita uma compreensão mais clara dos métodos, algo que, pelo distanciamento histórico existente entre nosso tempo e as origens destas imagens da era paleolítica, Herzog obviamente não consegue atingir observando as pinturas — e faz questão de expôr isso, por acreditar que, embora a arte permaneça, é impossível que ela registre por completo os sonhos e as angústias dos homens que, há mais de 32 mil anos, pintaram essas obras.

A Caverna dos Sonhos Esquecidos, como os demais documentários do diretor, é acima de tudo uma manifestação artística de Werner Herzog. E para além de qualquer moralismo que possam empregar contra esta definição, o que resta da experiência é a vivacidade de um cinema que se propõe a olhar para as peculiaridades do mundo e dos homens que o habitam sem precisar abnegar suas próprias origens, colocando a si mesmos, autor e filme, como parte integrante de uma experiência que transcende os fatos para propôr sensações e reflexões - nem sempre concretas ou possíveis de se transpôr em imagens, mas sempre sinceras. Não há no filme grandes respostas sobre as origens da arte ou qualquer outra questão que possa ser aplicada — embora saibamos que estas questões estão ali, elas fazem parte do processo, não de um pressuposto resultado. O que há de concreto em A Caverna dos Sonhos Esquecidos é que o filme de Herzog permanece como o até então único registro em vídeo daquelas pinturas e da exploração da caverna Chauvet, da mesma forma que este santuário existe para nosso tempo como o único registro de uma cultura primitiva à qual jamais teremos real acesso, e da qual os sonhos, anseios e particularidades vivenciamos apenas através do mistério de sua arte, que segue sendo uma das formas mais legítimas de compreendermos minimamente as diferenças entre culturas e períodos históricos da humanidade (e, mais do que isso, de nos defrontarmos com reflexos de nossa própria existência, indelével e atemporal em seu conflito com o mundo que habitamos).

Comentários (7)

Marcus Almeida | terça-feira, 01 de Novembro de 2011 - 18:29

Quero demais ver, Herzog é mestre.

DRIVER | quarta-feira, 02 de Novembro de 2011 - 07:35

Tenho que assistir ainda muito mais filmes dele.
Quantos aos documentários do herzog, lembro que O Homem Urso me deixou totalmente atordoado. Baita filme

Jairo Simões | segunda-feira, 17 de Fevereiro de 2014 - 16:10

Filmaço. 3D muito bem utilizado. Texto muito bom tbm. 😁

Faça login para comentar.