Saltar para o conteúdo

Carnossauro

(Carnosaur, 1993)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

A cólera esfomeada dos dinossauros de borracha estripadores

7,0

Esquema de cinema na mais pura pilantragem pela sobrevivência de si mesmo no mercado. Pela batuta do grande diretor e mestre produtor Roger Corman (nesta fita age como produtor - quem dirige esse é o Adam Simon), que conseguira os direitos do livro homônimo e resolvera por o projeto na pista justamente quando ficara sabendo da megaprodução Jurassic Park - Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), do Steven Spielberg. Aqui na intenção em aproveitar não só a dinossauromania, mas a publicidade massiva do filme-primo milionário, e ganhar em cima disso. Carnosaur (1984) é um livro do Harry Adam Knight, pseudônimo de Josh Brosnan, onde este último teria feito o tratamento de roteiro, segundos os créditos iniciais da obra. O que na verdade é uma falácia, já que, como citei, são o diabo da mesma pessoa e o Corman usou o livro bem por cima. Por estas informações marotas iniciais vamos conhecendo o desenvolvimento escuso da parada. Com muita malandragem e totalmente na marra.

Cada um luta com o que tem. O mainstream com seus orçamentos milionários e efeitos visuais sensacionais (entre outras coisas que o dinheiro pode comprar); os bagaceiros com a resistência, cara de pau, esperteza dos dinossauros borrachudos e caprichando na bestialidade. Uma luta classes marota. As histórias dos cinemas nos mais variados países nos contam isso. Seja nas metodologias do cinema trash norte-americano, na eurotrip de horror erótico do velho continente ocidental, na pornochanchada brasileira ou nos giallos italianos (e considerando as idiossincrasias de cada um); a picaretagem e a gaiatice são as armas dos pobres. O oportunismo diante da opressão de mercado numa busca por um espaço. Algo que o Corman sabia lidar muito bem, inclusive por saber do quão é impressionante o espaço pra todo tipo de marmota que o público estadunidense consome. É você aproveitar uma brecha de mercado copiando, a seu modo, o que o citado mainstream desenvolve. O que não deixa de ser invocada e irônica esta subversão, já que filmes de monstro, historicamente, foram pertencentes por muito tempo ao âmbito do cinema b.

Sobre o Carnossauro propriamente dito, é um liquidificador de mangofas abusivas para manter o choque no espectador após levá-lo ao cinema (e ao homevideo da febre das fitas VHS que assolava as casas) pela performance pilantrosa do seu processo produtor e garapa propagandista. Já alopra no começo da exibição com aquelas imagens reais de aves mortas numa granja com letreiros indicando manipulação genética. Dá de cara a entender o que esperar do negócio. Com direito à cientista louca protagonizada por Diane Ladd (mãe da Laura Dern do Jurassic Park, num misto de coincidência com sagaz esperteza deliciosa). A mulher tem a ideia – e intencionalidade – na erradicação humana sendo o melhor caminho para o planeta. Manca aí na jogada. Esta doutora, Jeanne Tiptree, e seu discurso marmotoso para devolver a Terra aos dinossauros. Fim das criaturas humanas e de todas as mulheres. Elas parindo as bestas-feras. Uma doutora louca, mas não demagoga, já que ela vem também a parir um dinossauro e papoca no processo com ele explodindo seu peito, em cena chupinhada de Alien – O Oitavo Passageiro (Alien, 1979), do Ridley Scott. Lembrando que a escapada do T-Rex e seu subsequente combate contra uma retroescavadeira, é cópia do Aliens – O Resgate (Aliens, 1986), de James Cameron. Anos depois – mais precisamente na boca do carnaval de 2020 – um senador do Ceará, Cid Gomes, jogou a vera uma retroescavadeira para cima de policiais amotinados no interior do estado. Soube copiar. Morroia. Mas essa é outra estória.

EUNICE. A empresa de manipulação genética – que pouco está se fodendo tanto para a população local quanto pela implicação das suas experiências, desde que atinja seus objetivos lucrativos – é a dona da granja, da divisão mineradora e doutros braços corporativos. A empresa do mal. Sua nomenclatura e logo comparecem nas mais variadas esferas do trabalho local. Em vários planos de composição, pra que não esqueçamos sua existência em momento algum. Corroborando com o tom conspirativesco dessa fita. Aqui um arranjo narrativo que vai de encontro frontal com o exagero proposto. Uma crítica altamente rude ao trato inescrupuloso da tecnologia e enfurecimento econômico. Tudo isso em prol do usufruto dum mosaico para o horror. Uma beleza.

Claro que o negócio descamba de começo. Estória estapafúrdia. Dinossauros incubados em ovos das aves, ou nas mulheres mesmo. Ao nascerem já explodem as galinhas (literalmente um arrombamento). A violência como princípio em seus próprios nascimentos. Seu instinto já os acomete ao nascerem. Aqui a obra acerta ao justificar todas as ações filtrando-as pelo gore brutal, que é algo que o filme pode, e consegue, fornecer bem. Além das aspirações do cinema de monstrengos, temos uma herança do cinema slasher nos personagens estapafúrdios prontos para entrarem no moedor de carne. O que Carnossauro se propõe é pegar elementos, descaradamente, doutros estilos ou de filmes específicos outros e usá-los em prol da sua construção propriamente underground. De forma totalmente desavergonhada.

A maravilha dos diálogos editados grosseiramente passando, em determinado momento, de explicação histórica (risível) e amizade formada, para raiva e contestação, onde denota o modus operandi com aquela sensibilidade duma parede que o cinema bagaceiro é uma beleza em demonstrar. São relações diretas. Apresentação mínima dos personagens e seus anseios, elevação dos tons de voz de acordo com o que cada cena específica pensa em pedir. Objetividade. Esta montanha russa braba de sensações é demonstrada pela citada montagem crua e pelas escolhas básicas dos planos. O que interessa é contar uma estória ao ritmo que o toque de caixa permitir. Como na brabeza em mostrar – não só a galera espirrando com o tal vírus espalhado na tal febre (o lance das galinhas era uma parte do processo) – as figuras se sujando de catarro e esfregando-se uns nos outros espalhando a doença. Um bom ensinamento em tempos de coronavírus. “Recombinação de DNA, retrovírus de frango, amostras de RNA de avestruz.” Esta é a combinação da cientista maluca pra meter uma infestação de dinossauros no bucho da galera. Este é o plano psicótico. E levado a cabo pela fita com a selvajaria suja como apelativo. O truque escolhido é chocar sempre o quanto necessário for.

Inclua no pacote a velocidade do vigia Doc ao adentrar na empresa EUNICE, indo rapidinho ao que interessa. O embate dele com a cientista maluca. A lógica das fitas trashs difere das mais comportadas no que tange, não só ao procedimento espalhafatoso da cólera carnal – beleza demais –, mas no encaminhamento abrupto das questões narrativas. Se um encontro tem que acontecer pra promover qualquer tipo de resolução, ele vai rolar, independentemente de explicações mais ajambradas. Quebra o ritmo, acelera e depois quebra novamente. O desajuste duma produção ligeira e ignorante e quando entendida como tal, diverte. Vagabundamente maliciosa nas promessas e desenrolações, e honesta na sua condução e ferocidade. Não nega suas origens entre cenas de violência gráfica, e atuações canhestramente exageradas que funcionam numa busca por encaixar o espectador dentro do absurdo, compensando o ritmo arrastado para um filme de terror com monstros. Naquela conjuntura esculhambada que eu dou o maior valor.

A noção de humor é com tudo a sua volta, propositalmente ou não. Desde os exageros das escolhas e posicionamentos dos personagens e sequências sérias demais que, por sua condução, divertem na marmota; à ironia e cinismo de momentos onde se debate ciência e militância com a desenvoltura dum rinoceronte desmamado. Isto rende pérolas discursivas, como a tiração de onda do vigia noturno Doc enquanto interpela os juvenis abestados-revoltados-pacifistas contrários às máquinas retroescavadeiras, quando os primeiros se acorrentam nestas últimas: “E alguém por acaso quer um suco de soja, um sanduíche vegetariano de broto de trigo? Ou um chazinho de erva?” No meio duma manifestação noturna. Levada de humor grotescamente roots. Uma invenção pra juntar tudo isto numa maçaroca viva que implique nesse vai e vem de situações conectadas tanto pelo malefício humano dos capitalistas do mal tanto quanto pelos absurdamente famintos dinossauros. Humor funciona como respiro esquizofrênico.

Os dinossauros. Animatrônicos borrachudos e fantoches. De duas espécies. Deinonychus e Tyrannosaurus Rex (somente estes dois puderam ser fabricados pelos limites de verba, já que no livro original o número de espécies era bem mais desenvolto) ajeitados pela equipe do técnico John Carl Buechler. Com grana minúscula em mãos e tendo que usar da criatividade em pouco tempo pra ajambrar as monstruosidades, a escolha é focar no grafismo do gore nas ações dos bichosos. Principalmente pra desviar um pouco do foco da maravilhosa fuleiragem daqueles bonecos. Nisso as escolhas dos planos ajudam a escondê-los nos cantos e nas sombras. Porém com uma interação de ataques deles bem fartas na destruição da carne. Os bonecos em tamanhos diferentes são perceptíveis em algumas cenas, mas isso só soma ao caráter de improviso e feitura na marra desse material. Acaba por funcionar pela proposição de destruição carnal, além do fator diversão obviamente. Estripamento e desmembramentos caprichados. Com a viscosidade lodosa das tripas. Pra chamar atenção mesmo. Chocar. Se vender como terror podreira é isso.

O conchavo de conspiração entre iniciativa privada, exército e estado é demonstrado nos estratagemas finais desta fita conspiracionista mediante uma epidemia viral. Onde o salvacionismo da raça é desenrolado independentemente das ações. A necessidade existencial para se safar dos planos duma louca que agira sob responsabilidade da empresa, e sem a última ter culpa. O que nos leva ao abrupto e cínico final. Os remanescentes devem morrer. Provas humanas duma conspiração não podem dar-se o luxo de estarem vivas. Esta espécie de liberdade narrativa é conseguida aqui através do baixo custo com risco de prejuízo mínimo. Por isso um material desses consegue alçar voos mais escrotos mediante o pessimismo e violência. Bem mais do que seus parentes de linguagem mais endinheirados. A resistência deste cinema vai além da qualidade estética que possa ser adjetivada. Vale pela existência dum material livre de amarras morais e de linguagem. Sobrevivendo à fórceps. No oportunismo viciado. Incomodando pela sua completa cara de pau. Desrespeitando para existir. Lutando por isso. Batendo de baixo pra cima, só pra variar o negócio. O cinema putanheiro é de esculhambações e culhões.

Parte retroativa do especial Monstruosidades Imensas

Comentários (2)

Matheus Gomes | segunda-feira, 26 de Abril de 2021 - 01:10

Que bizarro. Gostei.

Ted Rafael Araujo Nogueira | segunda-feira, 26 de Abril de 2021 - 13:00

Vale a curiosidade tanto pela obra criada quanto pela conjuntura que a cerca. Joia.

Gian Couto | terça-feira, 27 de Abril de 2021 - 07:57

Mas que delícia! Serei obrigado a conferir.

Faça login para comentar.