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Críticas

Cineplayers

As muitas representatividades.

7,0
Até hoje recebo reações conflitantes acerca do texto para Capitão América: O Soldado Invernal. Fui cair na ousadia de não me restringir a falar da 'fotografia, do roteiro e do elenco' do longa muito bem dirigido pelos irmãos Russo, e ainda provoquei a revolta dos fãs de HQs ao observar um mal disfarçado romance entre Steve Rogers e seu amigo Bucky Barnes. A forma como a direção comportava aquela amizade trazia à tona elementos da cartilha de gênero que posicionava a produção nessa escala de análise. Sinto informar aos fãs menos maleáveis que o tema volta ao centro da narrativa em Capitã Marvel, e dessa vez não é necessariamente os códigos imagéticos que colocam a produção na rota do entendimento quanto a questões de orientação sexual, mas o próprio roteiro, que abre concessões e mostra uma família nada tradicional desfeita pela tentativa de higienização pela qual a sociedade hoje passa. Aliado a isso, obviamente o empoderamento feminino que a rival DC tornou possível com Mulher Maravilha e que aqui tenta ser ampliado e melhorado.

Não, nesse texto você não irá encontrar quando foi publicada a primeiro edição de um quadrinho de Carol Danvers; não é pra isso que serve um texto analítico. Mas vale a pena saber que a humanidade e os valores que compõem a protagonista foram desenvolvidos por uma dupla/casal que tem experiência no pequeno drama, na minúcia. Anna Boden e Ryan Fleck estão juntos desde o sucesso de crítica multipremiado Half Nelson, o único da carreira de ambos onde só ele dirigiu. Desde então, a carreira se desenvolveu dentro do cinema independente americano observando os pequeninos seres que esbarram em qualquer esquina. O convite para a produção diametralmente oposta em proporção não escondeu o que Kevin Feige (o todo poderoso da MCU) queria deles: uma impressão sobre a mulher sem fantasia, muito mais que a heroína poderosa.

Com isso, todo o poderio imagético do longa não se encontra nas esperadas sequências de ação - até um tanto genéricas e sem muita capacidade de reter na retina ou na cabeça. É a origem, o passado e o reencontro com a família que terão impacto visual e emocional na produção. Não que estejamos diante de um produto necessariamente diferenciado; Capitã Marvel é um produto de exportação, oriundo de um universo onde a expressão máxima talvez seja "não se mexe em time que está ganhando"... mas uma reciclagem é sempre de bom tamanho. Assim, como tantos outros, há a necessidade de se fazer reconhecer ao fã. Então a trama de origem tem um quê do primeiro Capitão América (pela distância no tempo), a graça e o poder da trilha sonora vem de Guardiões da Galáxia (lá anos 80, aqui 90), o olhar para um povo extraterreno vem de Thor, e por aí vai. Terreno seguro para poder injetar as sutis particularidades de uma personagem complexa.

O roteiro escrito a inacreditáveis 14 mãos - 12 delas femininas - consegue delinear bem as relações entre Carol e seus parceiros de cena diretos, vividos por Samuel L. Jackson, Jude Law, Annette Bening e principalmente Lashana Lynch, sua "amiga" Maria. São relações construídas com cuidado mas que têm eco no belo grupo de atores em grande momentos, liderados por uma Brie Larson que vai adquirindo conforto durante a projeção, propositadamente, já que acompanhamos a desestruturação da personagem em busca de desvendar sua própria história, que ela julgava ter conhecimento. Brie vai saindo de um lugar automatizado para entregar um olhar cada vez menos duro, mais inocente, sobre fatos que ela mesma desconhecia sobre si.

Infelizmente o filme cai num problema comum ao 'blockbuster americano atual' e um desafio que precisa ser revisto com urgência: a duração. Aqui são 2h quase cravadas, mas que ainda assim parecem muito mais por uma queda de ritmo típico do universo MCU, que não consegue sustentar sua quilometragem exagerada. Ainda assim é um material inegavelmente sedutor, colorido, de maquiagem chamativa, e uma preocupação de popularizar sua trilha, com as contribuições de vozes femininas tradicionais dos anos 90, como Hole, Garbage e No Doubt.

Sem querer forçar um olhar, a verdade é que Capitã Marvel promove (ainda que sem querer, ou de maneira suavizada) um alerta sobre o apagamento de sexualidades desviadas mais contundente que os projetos do ano passado com esses temas tratados abertamente. Aqui, em um típico filme de super-herói com seus problemas comuns a produções megalômanas, mais uma vez a Marvel levanta uma discreta bandeira que serve como um diferencial a um filme que cresce por esse olhar discreto de igualdade, sem abrir mão do entretenimento; com boa vontade, nenhum aspecto de uma boa produção precisa ser abonado.

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