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Críticas

Cineplayers

Além de Jack Nicholson em seu primeiro protagonista, temos um profundo e interessante estudo de personagem.

9,0

Mesmo que Cada Um Vive Como Quer fosse um filme ruim, assisti-lo seria uma obrigação por um motivo bem simples: aqui é a primeira vez em que Jack Nicholson fora escalado como um protagonista de um longa, logo após sua surpreendente explosão como o advogado doidão e gente boa de Sem Destino (1969). Foi também a primeira contribuição do ator com o diretor Bob Rafelson, que o voltaria a dirigi-lo em outros quatro longas – O Dia dos Loucos (1972), O Destino Bate a Sua Porta (1981), O Cão de Guarda (1992) e Sangue & Vinho (1996). Felizmente, não é apenas por Nicholson que Cada Um Vive Como Quer merece sua atenção.

O filme conta a história Robert Dupea (Nicholson), um homem comum que trabalha como peão na exploração de petróleo onshore (em terra) e que tem um relacionamento conturbado com Rayette Dipesto (Karen Black), uma garçonete chata que o ama mais do que tudo na vida. Só que ele é uma pessoa infeliz. Vivendo constantemente um conflito interno, Dupea não sabe o que quer realmente da vida. Vive aproveitando as melhores coisas que ela pode oferecer, mas trata mal tanto Rayette quanto seus melhores amigos (que são poucos), odeia o emprego em que trabalha (“Um dia vou descobrir como você me convenceu a vir trabalhar aqui”), reclama de tudo. No fundo sabe que está sendo uma pessoa ruim e tenta fazer o melhor, reconciliando com as pessoas que destrata e tentando fazer o melhor naquilo que odeia.

Quando a irmã de Robert (Lois Smith) dá a notícia de que seu pai está muito doente, ele resolve viajar até sua antiga casa para resolver problemas do passado e dar um novo rumo às coisas. Durante essa viagem, ele conhece Catherine Van Oost (Susan Anspach), noiva de seu irmão, ambos exímios pianistas. Robert, que também tem o dom para a música, mas que resolveu deixar de lado o talento por causa de seus conflitos, sente-se atraído pela moça e acaba arrumando mais problemas do que já tinha quando envolve-se com ela.

Trabalhando o tempo inteiro com o labirinto de emoções que é a cabeça de Robert, o diretor Bob Rafelson cria um filme aparentemente simples, mas extremamente complexo e eficiente em conteúdo. Ao mesmo tempo em que Robert levanta a voz para gritar, impor suas opiniões, mostra-se um covarde por não tomar decisões importantes em sua vida, como sair do emprego ou terminar seu relacionamento com Rayette. E quando demonstra realmente ter certeza de algo, revela imaturidade por não saber como lidar com a situação. A partir dessa instabilidade emocional, diversas sequências memoráveis são criadas, como quando Robert toca piano em pleno engarrafamento e o final, um dos mais poeticamente tristes que já vi no cinema, fechando com chave de ouro todo essa guerra interior que o personagem vive.

Mais do que um personagem, Robert pode ser visto como um símbolo de toda uma geração que viria a seguir no cinema norte-americano: a contracultura do anti-herói, cheio de defeitos, representada perfeitamente pelo personagem de Nicholson. Chato, irritante, imperfeito, grosseiro, mas ainda assim, torcemos e sentimos pena por aquela pessoa que, no fundo, é apenas infeliz pelos rumos que sua vida tomou – e ele não teve força, coragem ou atitude para mudar. Essa sua viagem para casa é muito mais do que uma simples atitude para reatar com o pai: pode ser vista como uma viagem para redescobrir-se (e, para nós, o descobrirmos), pois passamos a ter informações sobre sua vida que não havíamos presenciado antes (e que explica muito sobre ele).

Mas não é apenas Robert que é um personagem tridimensional. A gama inteira de pessoas que cruzarão sua vida é interessante e contribui, de uma maneira ou de outra, para todo o clima do filme. Sua irmã, Partita, é uma talentosa pianista que acha que todo mundo a odeia; o pai de Robert, com problemas sérios de saúde, consegue mostrar sua reprovação ao filho apenas no olhar, quase morto; até mesmo os amigos, talvez os únicos que Robert mantém na pequena cidade em que resolveu viver, mostram-se muito mais complexos do que simples pessoas pobres e felizes.

Já Catherine, interpretada magistralmente pela não tão bela Susan Anspach, mostra-se o mais interessante conflito e provação pelo qual Robert terá que passar. Ao mesmo tempo em que ele repudia o tom superior que sua família adota, além de negar o dom para a música, ele vai se apaixonar de verdade logo pela mulher que representa tudo o que ele detesta. Catherine é culta, toca piano como ninguém, não depende do dinheiro dos outros para viver e é bastante correta em tudo o que faz - até o momento em que ela conhece Robert e, por algum tempo, perde sua razão. A relação entre os dois desenvolve de maneira interessante e explosiva, como se ambos tivessem com algo guardado dentro de si por muito tempo. Seria capaz do coração falar mais alto do que a razão?

A conclusão do longa, brilhantemente executada, pode ser vista como pró ou contra do filme, dependendo justamente do gosto de quem o assiste. Muitas críticas foram feitas como se ele fosse parado demais, lento, o que de fato é, mas não são características pejorativas, pois são essenciais para construir e representar o inferno astral e a crise existencial pelo qual Robert passa. Jack Nicholson, logo em sua estreia como protagonista, faz um de seus melhores trabalhos nesta obra que não é muito lembrada nos dias de hoje, mas que deve ser redescoberta por novas gerações, também cheias de crises existenciais que, muitas vezes, nem deveriam existir. Serve não apenas como entretenimento, mas também como reflexão e emoção.

Comentários (2)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 15:59

Nunca tinha visto, até ler a crítica e ir atrás. Ótimo filme, muito bom mesmo. O bom e velho Jack é demais!!!!!!

Daniel Lucena | domingo, 11 de Outubro de 2020 - 00:28

Soube desse filme através do brilhante livro "Como a geração sexo, drogas e rock´n roll salvou Hollywood"

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