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Belarmino

(Belarmino, 1964)
6,4
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A Mão da Lupa

9,0

A abertura de jazz conduzida por Manuel Jorge Veloso guia uma sequência linda de fotos do protagonista, frame a frame, no ritmo da música, somos introduzidos diretamente a um centro de treinamento na Mouraria. Lá os boxeadores se aquecem num plano bem aberto, que se corta num travelling do caminhar clássico do grande pugilista até o ringue, acompanhado de sua voz em off narrando seus grandes feitos.  Belarmino (Belarmino, 1964) abre-se como o que poderia ser um documentário padrão de resgate apoteótico a um personagem, mas não o é.  

O fato de o pugilista nunca ter alcançado aquilo que prometia confere a obra um status de estudo sobre o fracasso, e não a recorrente tentativa de endeusamento da figura documentada. Fernando Lopes, no fundo, nem esteja mesmo tão interessado na carreira em si de seu personagem, o desenrolar da obra percorre a vida de Belarmino Fragoso e seus pensamentos, sempre relacionado a esse ao contexto do boxe, mas sem permitir que isto seja o fim de tudo, significa ao personagem apenas o meio para ganhar a vida, e ao cineasta uma lupa capaz de expandir ao espectador o seu olhar sobre a sociedade lisboeta de seu tempo. 

Lopes é uma das grandes figuras de sua geração de realizadores portugueses, inseridos pela crítica num movimento denominado “Novo Cinema português”, junto – especialmente, mas não somente – de Paulo Rocha e Antonio Macedo, romperam com o que se estava produzindo em Portugal naquele momento. Apesar do movimento ser muito variado, e alguns estudiosos enxerga-lo até os anos 80, principalmente os seus primeiros anos são dedicados a desconstruir a política e o cinema português. Esta trinca de cineastas e alguns de seus contemporâneos tiveram a oportunidade de estudar em outros centros europeus e ampliar o seu leque. Lopes, por exemplo, veio de Londres dominado pelo free cinema. Junto com a sua experiencia empírica – inclusive como aluno de Linsday Anderson – e as já somadas horas de cineclubismo desde muito jovem, ao escrever e dirigir seu primeiro longa nota-se o acúmulo de referências, e sua virtuosa aplicação. 

 A relação que o autor pretende propor entre o labor de seu protagonista e o mundo que o circula pode ser muito bem vista em A Estrada da Vida (La Strada, 1954) de Federico Fellini no que diz respeito ao contexto circense, o maestro italiano, ainda que também com um protagonista único, não está interessado no mundo do circo e sua forma, mas sim no que o circula, quais são as consequências de escolher estar neste mundo, ou ainda o que significa ser cooptado por esse ambiente; e evidentemente ainda mais próximo, Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi fratelli, 1960) de Luchino Visconti, onde o boxe inicialmente aparece como um meio de ascensão social, e termina como símbolo de impossibilidade de existência afetiva, algo bem próximo da vivencia de Belarmino, e que também viverá Jake LaMotta em Touro Indomável (Raging Bull, 1980). 

Ainda que as vanguardas italianas e inglesas sejam as principais referências da obra, Lopez não escolhe o relato ficcional, o seu roteiro é documental. Em diversos momentos de som direto, longa observação, e mesmo de entrevistas parece que vamos entrar num documentário direto , como por exemplo os de Shirley Clarke ou o próprio Wiseman, de só um narrador como Portrait of Jason (Portrait of Jason, 1967), onde a verdade se constrói a partir daquele relato único, rico – mas ainda assim monolítico – mas não, o realizador explora uma outra camada, o segundo quarto da obra traz-nos  o algoz do protagonista, o seu empresário da época, figura que dessacraliza os primeiros minutos de exaltação de Belarmino, e o coloca em cheque não como lutador, mas como atleta profissional, e em conseguinte como homem de responsabilidades. 

A descentralização rende um momento muito interessante, os outrora amigos e sócios, confrontam-se não com pancadarias, mas com palavras. Ainda que distantes fisicamente, a edição brilhantemente coloca-os em combate, os cortes profundos não são dos punhos e no ringue, mas sim pela montagem, os dois tratam das mesmas situações de forma completamente oposta, um relato por cima da outro, verdade sobre verdade, e um total desinteresse por um caminho só.  

Claro que toda a roupagem cinematograficamente por trás da história de um protagonista único termina por humaniza-lo, mas além da interferência do empresário Albano, há diversos outros pontos destacados que vão de encontro ao narrado por Belarmino, e o próprio autor mostra haver investigado a vida de seu entrevistado, coloca-o em xeque em muitos momentos sobre sua vida mundana ao redor do boxe, enquanto ele, por seu lado, tenta desviar de tudo, mantendo-se como um profissional, mas apreciador de mulheres – ainda que pai e casado – e da boemia do Bairro Alto lisboeta. 

Essa escolha de confronto na construção de um guerreiro no ringue, mas também nas ruas compõe com grandeza a camada narrativa do processo de entrevista documental, sem que isso reduza a obra a uma peça jornalística de tese e contra tese. Prova maior e mais profunda do desprezo a mera reportagem em prol do cinema é quando num longo plano-sequência com fundo musical, em seguida com som ambiente, vemos o atleta sentado numa mesa de bar a pouca luz, focado em seu hobbie , totalmente distante da arena. 

 O filme ganha potência quando deixa as inserções internas, o som direto dá espaço ao som de Jorge Veloso, avança para imagens externas da capital portuguesa, desde o estádio de treinamento, ao passar por ruas da Baixa, até a própria casa de Belarmino, juntos da trilha jazzista vão buscar dar corpo ao pugilista além do boxe, Belarmino é um produto do meio classicista e desigual de Lisboa. Lopez está interessado em experimentar, em expandir a subjetividade de seu protagonista a um senso muitos mais global que apenas as cordas de uma arena, o começo do Novo Cinema português olhava uma nova década que se iniciava como uma oportunidade de mudanças não só na estética cinematográfica, mas em seu entorno social e político dominado pela ditadura salazarista, que se finalizaria apenas dez anos depois da estreia da obra. 

Apesar do boxe ser apenas a arena de expansão de vários temas, é interessante pontuar que há sim uma espécie de batalha final, mas desvestida da dramatização de seu primo rico e famoso do futuro Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976), sem a pretensão de conferir a este momento uma espécie chave de ouro, lê-se a escolha do embate como um ensaio de uma tentativa, entre golpes e esquivas, o plano é cortado, transformando-se em fotos aproximadas da luta, sem denotar um vencedor, afinal aqui eles não existem. 

A obra que inicialmente se apresenta como o que poderia ser uma peça jornalística sobre ascensão e queda de um desportista frustrado, expande-se por vários caminhos para apresentar  um criativo e virtuoso intento bem sucedido de junção das artes, pelas mãos fundacionais de Fernando Lopes vemos o entrelaçar de cinema, boxe e música, sem que isto seja uma experimentação vazia de valor social, muito pelo contrário,  Belarmino (1964) é um abre-alas que está na mente ou nas mãos de todo o português apaixonado por cinema.  

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