O faroeste é um gênero que só prevalece hoje sob a ótica do ressignificado, da adaptação, de uma recolocação no imaginário do público. Muito popular no início da história do cinema americano, sendo até hoje considerado o gênero estadunidense por excelência, ele já passou pelo período de declínio e quase extinção, sendo exportado para olhares estrangeiros que o reimaginaram em novas configurações de cenários e contextos históricos (como o spaghetti italiano) até ser aos poucos desmembrado com o fim da Nova Hollywood. Com algumas boas exceções, como Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), Dead Man (idem, 1995), O Atalho (Meek’s Cutoff, 2010) e Dívida de Honra (The Homesman, 2014), ele ressurgiu por vezes no cinema contemporâneo por inteiro, assumido como faroeste, mas na maior parte dos casos se revela parcial em filmes em que nem sempre sua presença é totalmente compreendida pelo público, como ocorreu em Western (idem, 2017), de Valeska Grisebach. A tradicional conquista do Oeste, a formação da nação americana, já não sustenta enredos que atraiam as pessoas, e por isso o faroeste hoje consegue ser ao mesmo tempo anacrônico e cheio de possibilidades de reinvenção.
A diretora neozelandesa Jane Campion parece compreender em seu novo filme, Ataque dos Cães (The Power of the Dog, 2021), o que é capaz de ainda ser discutido e explorado no gênero para além de seus fundamentos mais ultrapassados, e curiosamente oferece um faroeste identificável dentro da tradição e ao mesmo tempo muito inverso ao que estamos acostumados a ver. O romance de base é ambientado em 1925, pleno século XX, e compreende uma América já formada como potência, estruturada social e economicamente, mas também invariavelmente presa a um passado enraizado na violência, na disputa territorial, no machismo, no racismo e no fundamentalismo religioso. A princípio pode parecer uma história de cowboys durões, mulheres indefesas e cidadezinhas esquecidas no tempo, mas seus estereótipos são um a um desconstruídos conforme a trama avança.
Na verdade, Campion realiza a proeza de comandar três níveis de narrativas independentes que ocorrem simultaneamente dentro de um único núcleo. Na superfície, um faroeste tradicional, uma história simples e direta que deixa bem claro logo de início a formação de seus personagens, suas relações, sentimentos, interações e conflitos. Num segundo nível, mais sutil e menos ancorado no cinema de gênero, os atores emprestam tantas nuances e variações a seus personagens que por vezes suas ações não parecem condizer com o que realmente sentem e pensam, de modo que nasce daí um segundo espectro narrativo que não se alinha com o primeiro. Por fim, numa terceira e ainda mais sutil camada, a própria câmera de Campion explora aqueles cenários e ambientes de maneira muito sugestiva, anunciando em seus enquadramentos e composições visuais a aproximação de um clímax que não se insinua ou concretiza nas demais narrativas.
O notável na direção de Campion é não permitir que essas três narrativas se anulem. Embora se sobreponham por vezes, em outras se complementam, formam elipses, criam níveis de profundidade para uma história que em resumo é até bastante simples e direta, mas que ainda assim surpreende na maneira como os arquétipos se mesclam. O protagonista Phil Burbank, vivido por Benedict Cumberbatch, por exemplo, parte de um arquétipo do cowboy solitário, durão, até algo vilanesco, para se revelar aos poucos uma alma atormentada pelos próprios desejos e inclinações, reprimido por crescer em um ambiente e época hostis a sua verdadeira identidade. Enquanto isso, a única personagem feminina central, interpretada por Kirsten Dunst, se revela uma alcóolatra desestruturada após demonstrar de início o comportamento de uma viúva prendada e indefesa. O elo entre esses arcos está no personagem de Kodi Smit-McPhee, um rapaz jovem e delicado que parece colocado como um contraponto à figura de Phil, mas que conforme tudo se condensa em novas elipses e revelações acaba por se revelar um outro tipo de pessoa, com uma função muito inesperada na narrativa. Ainda que sua figura se mantenha no contrapeso do protagonista, isso passa a ser explorado por uma outra perspectiva conforme Phil se desloca para fora da figura de vilão.
O dilema aqui é tanto externo quanto interno, uma luta do homem contra o ambiente e contra sua própria natureza. Campion gasta longos planos em planícies assombreadas pelas nuvens, que formam desenhos de formatos animalescos nos pastos, bem como reserva tempo para sequências de animais sendo pastoreados, gado abatido, coelhos fugindo, cavalos açoitados, carcaças, testículos e dorsos rasgados em planos fechados e grotescos. Em paralelo, o ponto de ebulição na relação contida entre os personagens se liquidificando em um eixo no qual cada um se despe dos papéis tradicionais dentro da encenação do faroeste-gênero para se revelarem em suas verdadeiras naturezas que traem qualquer arquétipo – autodestrutivos, reprimidos, sádicos, calculistas, apaixonados.
Campion reimagina o faroeste ao desloca-lo para um período histórico mais recente e ousar quebrar suas estruturas uma a uma, em um exercício pós moderno de análise do gênero imaginado fora de um contexto caricatural. Ela ousa negar a figura do cowboy herói, arrisca colocar em evidência uma personagem feminina marginalizada e infeliz dentro da configuração familiar, atribui dimensões psicológicas, sexuais, emocionais muito mais variadas a seus homens antes tão impávidos e inflexíveis pelo verniz da tradição, inverte o que é delicado e o que é brutal, o que é frágil e o que é rude, e aproxima seu público de um universo antes tão cristalizado como distante e idealizado pelo imaginário coletivo.
Phil, em especial, parece reunir em si o tal poder do cão que o texto bíblico que dá o nome original ao filme aponta, por não saber mais se conter dentro de sua fachada e passar a exercer uma terrível influência psicológica capaz de alterar o comportamento de todos ao redor e força-los para fora de suas máscaras e padrões sociais. Num mundo de flores de papel, casamentos de conveniência e sentimentos forjados, ele figura como vilão não por atos de maldade ou falhas de caráter, mas por ser o único que ousa ser sincero o suficiente sobre a própria natureza, ainda que jamais admita isso para alguém além de si mesmo. Somente na sequencia final, quando esse poder se extingue e conforme o alerta bíblico promete, que todos voltam a respirar aliviados, de novo assumindo seus papéis, livres dessa influência, mas por dentro já revirados para sempre e incapazes de se reconhecerem novamente nas peles que habitam.
estava na minha cara o tempo todo... esse ato final me pegou de surpresa.
como sempre excelente crítica
Crítica fantástica mesmo, Heitor. Parabéns!
Ótimo texto. Não tinha percebido certas assimilações. Gostei bastante da análise. Parabéns!
Baita crítica e baita filme