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Arremesso Final

(The Last Dance, 2020)
9,0
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Jordan: Made in America

10,0

"Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida”

Enquanto a internet se esgoela e Michael Phelps se solidariza com seu xará, é com a graça de um sorriso na cara que eu vejo essa obra sobre o maior time da história do basquete norte-americano, reflito e penso que a síntese de seu bastião foi escrita pelo maior cronista da história do futebol brasileiro — e sem jamais ter visto esse gênio brilhar nas quadras estadunidenses. “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, dizia Nelson Rodrigues, numa frase que alude à NBA e a Michael Jordan sempre que o astro admite a busca de uma rixa pessoal não apenas para vencer seu adversário, como para destruí-lo, humilhá-lo (e eventualmente aos seus colegas). Uma, duas, três, várias vezes ao longo de Arremesso Final (The Last Dance, 2020). 

Diz-se que Michael Jordan só abriu seu casulo ao constatar o risco de ser destronado por LeBron James junto à opinião pública (um raciocínio muito pertinente). Mas a série da ESPN com a Netflix está longe de ser um mero veículo de adoração ao “Jesus Negro” do Chicago Bulls. Obviamente, Arremesso Final não se furta de mostrar o talento inato, descomunal, do maior ídolo da história do basquete. Mas sua narrativa é dedicada a destrinchar e reconstituir a personalidade multidimensional do astro. Dentre outras coisas, que ele nada tinha de sobre-humano, divinal ou perfeito em termos de caráter, do crivo popular à pena rodrigueana. Como a blasfêmia de suas autocomparações com Deus expressam, Jordan não fora o típico herói maniqueísta da filosofia cristã; ele estava mais para um Aquiles de Homero: um herói semidivinal, pois dotado de falhas, várias. A ponto de usá-las como combustível de seu sucesso e transformação do medíocre Chicago Bulls numa dinastia vencedora. Arremesso Final é tão boa porque mostra tudo isso e resgata como essa carreira extraordinária teve os mesmos contrapesos de uma vida banal. Ou piores. Como Nelson Rodrigues, de novo ele, cunhou lá atrás: “Ser o maior do mundo em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.”

Gênio indomável

Arisco aos holofotes desde o início dos anos 1990 por causa de embates com a imprensa e um notório recluso desde que se aposentou das quadras, Michael Jordan se apresenta incrivelmente disponível para a carga maciça de entrevistas de Arremesso Final. Com aparente franqueza, o que denota o grande trabalho do diretor Jason Hehir e sua equipe ao receber essa honra. O time de produção capricha ao colher a versão oficial de Michael Jordan tanto sobre os momentos de glória, como sobre as polêmicas de sua carreira. Numa mostra da importância de um bom roteiro em obras documentais, a série é pensada para ouvir o astro em momentos distintos e confrontá-lo com os pontos de vista de outros depoentes ilustres: desafetos (Isiah Thomas), ex-desafetos (Reggie Miller), amigos não tão amigos (Horace Grant), rivais bélicos (Patrick Ewing), rivais irmãos (Magic Johnson, Larry Bird), uma conselheira querida nem sempre ouvida (sua mãe Deloris), jornalistas que viram seus vícios e virtudes de perto, um biógrafo corajoso, um dos estadistas mais emblemáticos de Chicago e do mundo (Barack Obama) e um chefe vital nas conquistas e na frustração final de sua carreira (o proprietário Jerry Reinsdorf).

Como cada um desses adjetivos demonstra, as dinâmicas de relacionamento de Michael Jordan sempre orbitam entre a admiração e o conflito — isto aqui, sua força motriz na NBA e a força motriz da série. The Last Dance mostra que nem mesmo seu leal escudeiro e excepcional assistente Scottie Pippen esteve alheio à sua cobrança. E que seus melhores coadjuvantes, Dennis Rodman, Toni Kukoc, Steve Kerr e até o técnico Phil Jackson, todos passaram pelo julgamento de Michael antes de ganhar sua confiança. Por vezes, um julgamento com a dureza de um soco — literalmente. Melhor assim; os condenados jamais teriam seu mínimo respeito. Vide a forma como Jordan tratava o manager Jerry Krause: do deboche e bullying ao mais puro desprezo. Tudo na frente das câmeras.

Jerry Krause declara, no início da temporada 1997–98, que demitiria o técnico Phil Jackson, faria uma reformulação e o time pentacampeão seria desmontado, contra a vontade de todos os seus integrantes, no fim daquele campeonato. Assim, pelas linhas mais tortas possíveis, o vaidoso dirigente tornaria-se o inimigo em casa que motivaria o veterano Michael Jordan quando já não havia quem questionasse o seu reinado. Nasce, assim, um antagonista perfeito para a série. E o conflito do qual partirá a linha narrativa principal de Arremesso Final.

Essa timeline se vale de um acervo espetacular, fruto do acesso inédito permitido pelo próprio Michael Jordan aos bastidores do Chicago Bulls em seu canto do cisne. Esse material único e aproximado revela a versão mais consagrada, carismática e explosiva de um astro com permissão para fazer de tudo: ter um piano em seu quarto de hotel, distribuir ingressos quando ninguém mais tinha, beber cerveja no vestiário, fumar charuto antes e depois dos jogos, agir livremente sem se esconder de ninguém. Um homem extremamente envaidecido, embrutecido por tudo que viveu até ali, experiências moduladas pela lógica de antagonismo que ele próprio adotara como fórmula do seu triunfo.

Mas esse Jordan era também, e acima de tudo, um atleta de fato e focado em passar por cima de qualquer coisa e qualquer um para transformar sua “última dança” em um segundo tricampeonato consecutivo inédito na história da NBA. Diante desse monstro histórico seguido de perto ao longo de um ano inteiro, Jason Hehir tem a sagacidade de contar, paralelamente, como se deu a transformação desse “monstro”. Ou seja: a temporada 1997–98 como eixo da série numa linha temporal principal intercalada com flashbacks que remontam (além de arcos rápidos de Pippen, Rodman, Jackson, Kukoc e Kerr) o passado de Mike desde bem jovem a toda sua carreira em Chicago.

Na mesma semana de abril que marcou sua estreia, chegava à mesma Netflix um filme que mostra como é preciso ter habilidade para contar histórias partidas temporalmente: Sergio, ficção em que o talentoso Wagner Moura vive um personagem muito interessante e são ambos subaproveitados por uma trama que toda hora salta no tempo sem qualquer preparação, indução narrativa ou provocação do espectador e de sua atenção para o que virá dessa ruptura do fluxo da história. Arremesso Final é uma aula para o roteirista dessa modorrenta cinebiografia: toda volta no tempo se vale de um gancho na linha temporal principal e todo retorno do passado ocorre depois que esse arco se fecha, tantas vezes rimando com o que ocorre anos depois e montando quase toda a série com cortes perfeitos (match cuts). Ou seja, uma forma soberba em plena consonância com um conteúdo potente, riquíssimo. O quinto episódio, ponto alto da série, ilustra isso com perfeição. Por isso, para ilustrar seu exemplo e detalhar sua grandeza, vou esmiuçá-lo a seguir.

Atenção! O texto a seguir contém spoilers do Episódio V da série Arremesso Final

O Episódio V já começa com uma cartela dedicatória “à memória de Kobe Bryant, com amor”. O ícone do Los Angeles Lakers — morto tragicamente em fevereiro desse ano, em ocasião que marcou a primeira (e emocionada) aparição pública de Michael Jordan em muito tempo — foi seu substituto como símbolo maior da liga. Mais ainda, Kobe foi o avatar ideal de Michael: as trajetórias meteóricas atravessadas por polêmicas, o biotipo e a altura, o jogo plástico e habilidoso, os movimentos, o trabalho mental severo para destruir seus oponentes, o dom natural no ataque, o foco para também serem grandes na defesa. É ainda curioso perceber que a única testemunha em toda a série que afirma que Jordan fora um mentor para um colega de profissão é Kobe Bryant — que, nesse aspecto, se tornaria muito maior que seu ídolo, transcendendo a NBA para mentorear personalidades de outros esportes e artes de todo o mundo. 

"Isso são os anos 1990"

Esse encontro ocorre no mítico All Star Game de 1998, último da dinastia do Chicago Bulls, em pleno Madison Square Garden. Ao som da batida icônica do rapper Nas e do refrão de “If I Ruled The World” na voz de Lauryn Hill, vemos Jordan nos corredores da meca do basquete. Ele cruza com Magic Johnson e Larry Bird (a trindade que simboliza a transição da NBA dos anos 1980 para os anos 1990), provoca o gigante Shaquille O’Neal e, então, surge Kobe Bryant, ao final de um rápido plano-sequência genial em sua casualidade. A narração ressalta o feito prodigioso do ala-armador do Los Angeles Lakers ao se tornar o All-Star mais jovem da história da NBA. A ambição do garoto de superar seu ídolo logo se expressa na quadra, na marcação mano a mano entre os dois. E não o vemos mais em toda a série! Apenas nesse trecho que é um verdadeiro diamante e só aumenta a expectativa dos fãs por uma obra tão monumental quanto The Last Dance sobre a eterna Black Mamba. Caberá ao restante do capítulo manter o alto nível dessa introdução instigante — o que ocorre com louvor.

Toda trabalhada na coesão narrativa, Arremesso Final volta a esse mesmo cenário, o Madison Squaren Garden, após os créditos de abertura. Só que em outro contexto: Kobe sai, entra o Air Jordan. Para celebrar seu último desfile no palco novaiorquino (seu predileto), Michael lança o pisante que marcou sua primeira grande transformação, de jovem promessa a símbolo cultural, 14 anos antes. A essa altura, já sabemos o que vai acontecer: o tempo é suspenso, a câmera congela, fecha no tênis vintage do astro, uma linha do tempo invade a tela e a arte gráfica nos transporta para o ano de 1984.

Assessorado por verdadeiros gênios do marketing, Michael Jordan fecha o acordo de sua vida ao ser convencido (com dificuldade) a se juntar à Nike. Se a empresa venceu a irrelevância em relação às concorrentes e dentro da NBA, Mike se tornou uma marca mundial. Uma pequena fã vestida com o figurino emblemático do clipe de “Thriller”, do seu outro xará Michael Jackson, vidrada na gravação de um anúncio do novo MJ, dá o tom desse status. O Air Jordan vira personagem em Ela Quer Tudo (She's Gotta Have It, 1986) e Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, 1989), filmes de Spike Lee, e vice-versa: o personagem Mars Blackmon ganha os comerciais do Air Jordan. O sneaker salta a alçada esportiva e vira artigo fashion, sonho de consumo. Entre a juventude negra, símbolo de orgulho. Mas não só. Michael Jordan ocupa o lugar deixado por O.J. Simpson anos antes, tornando-se um homem negro aceito pelo mercado publicitário. E quebra um paradigma de marginalidade do basquetebol, visto como inferior ao boxe, tênis e golfe.

O exercício de construção da história do mito de Michael Jordan em 1998, a que Arremesso Final se empenha, implica nessas diversas ramificações que contam também a história dos Estados Unidos e do mundo. Isso ocorre numa profusão incessante aqui porque o quinto episódio só retorna à sua linha temporal principal, basicamente, para mostrar o efeito destrutivo de um tênis sem conforto e tecnologia nos pés de um atleta de alto rendimento. Sua base será 1992, quando o Chicago Bulls conquistou seu primeiro bicampeonato destruindo o Portland Trail Blazers de Clyde Drexler. Michael Jordan era o maestro de um time que jogava por música, com Scottie Pippen, Horace Grant, Bill Paxson e B.J. Armstrong. O som dessa sinfonia é “The Choice is Yours” do duo Black Sheep —  hit do outro movimento negro estadunidense que vivia sua Era de Ouro e se equiparava ao Bulls de Michael Jordan em termos de impacto cultural: o hip-hop.

A partir dali, Arremesso Final vira um repente incessante de arcos, causos e dramas na órbita de seu protagonista. Sua ida aos Jogos Olímpicos de Barcelona cria todo um conflito em torno de Isiah Thomas, cortado do Dream Team por causa do seus antecedentes com outros craques. O Time dos Sonhos de 92’ catapulta a NBA internacionalmente com Michael Jordan como seu garoto-propaganda. Simples eventos de divulgação ou preparação do elenco viram motivo de rivalidade entre amigos. “Não chegue tão perto do Michael, que é falta”, Magic provoca, num típico trash-talk que somente o fã de basquete vai entender por completo. “Isso são os anos 1990”, grita Jordan, mandando o recado para as estrelas ao seu redor: não importa que eles joguem muito, ele joga ainda mais. Quem manda ali é ele. O macho alfa da companhia.

Jason Hehir adota esse mesmo lema (“Isso são os anos 1990”) ao montar The Last Dance como uma escalada crescente de eventos históricos que marcaram aquela década. Os confrontos entre Estados Unidos e a finalista Croácia na Olimpíada permitem contar que o croata Toni Kukoc, jovem promessa do Chicago Bulls e queridinho de Jerry Krause, foi usado como bode expiatório por Michael Jordan e Scottie Pippen; e isso vira gancho para falar brevemente sobre a dissolução da Iugoslávia, suas guerras civis, a força mental e o patriotismo de seu povo. Quando o Dream Team ganha a medalha de ouro, o gênio indomável vem à tona de novo —  Jordan compra uma briga publicitária com o comitê olímpico norte-americano e tampa o logotipo da Reebok com uma bandeira dos Estados Unidos. Nessa espiral de conflitos, é claro que Jordan um dia iria arranhar sua imagem, e isso ocorre justamente numa suposta tentativa de preservação dessa identidade de herói nacional.

Jordan: Made in America

O time de edição de Arremesso Final prova novamente seu virtuosismo ao encadear, numa rápida sequência, três eventos antagônicos. Primeiro, um ato de rebeldia contra um evento publicitário milionário manipulado por Jordan como um símbolo de resistência patriótica. Depois, um anúncio da Gatorade que retrata Mike como um exemplo a ser seguido por todo mundo no mundo todo. Por fim, sua recusa em emprestar sua imagem para um político afroamericano enfrentar um supremacista branco orgulhosamente racista em seu berço formador como atleta, a Carolina da Norte. Como assim?! O amor genuíno pelo esporte ou um fenômeno midiático declarado? Um herói nacional que não se posiciona contra a discriminação dos seus irmãos? “Be Like Mike” ou “Republicanos também compram tênis”? Tudo isso. E nada. O objetivo de Jason Hehir é enriquecer a narrativa com todas as contradições formativas de seu protagonista espetacular.

Nesses momentos, que não não poucos, Arremesso Final se lança ao patamar de obra-prima do gênero alcançado por outra produção recente da ESPN Films: O.J.: Made in America (idem, 2016), minissérie documental que fez história no Oscar 2017 com uma fórmula semelhante: usar a história de um ídolo negro dos esportes americanos para contar a história de uma nação no século 20. Com a complexidade que esses personagens exigem e essa proposta merece. Seja apenas relatando a morte chocante de um homem inocente, permitindo que o público deduza as implicações raciais desse assassinato terrível que desabaria sobre Michael Jordan. Seja concedendo ao biografado o benefício da dúvida, a admissão sincera de que seu egoísmo fora parte essencial de sua mentalidade como competidor e que seu mito jamais existiria se ele não tivesse se dedicado completamente a si mesmo e à sua arte, o basquetebol. Não à toa esse quinto episódio termina com MJ declarando que, apesar de toda adulação ao seu redor, seu objetivo é um só: o sexto título da NBA.

Essas digressões sozinhas talvez não constituíssem uma obra-prima. Por isso eu assino essa crítica com mais detalhes que o de costume  e com tranquilidade. The Last Dance não é sobre o que acontece, mas sobre como isso é contado, e por isso deve ser vista. Conteúdo e forma. Para além da já celebrada montagem da série. Os bons exemplos de articulação de linguagem são inúmeros.

Convenções do gênero, como imagens de arquivo e depoimentos dos envolvidos, se alternam com gravações inéditas feitas em bastidores ou à beira da quadra, das mais antigas às tratadas digitalmente. As câmeras lentas são usadas com o cálculo devido. Cada música que eu fiz questão de citar nesse texto tem uma função evocativa, rítmica, temporal ou temática —  vide Lou Reed, “Walk on the Wild Side”, hino de exaltação dos imperfeitos, no início do episódio que adentra o lado selvagem do protagonista. O arco que narra a história de Steve Kerr, sua construção como um legítimo underdog e as coincidências entre sua biografia e do Michael (duas figuras opostas) são uma peça sensível de manipulação pela arte. Uma declamação shakesperiana de Michael Jordan num momento regado a Miller Lite com Ron Harper e Scottie Pippen (reparem. a cara. do Pippen.) vira mote para um maravilhoso curta experimental em preto-e-branco à la Kevin Smith em O Balconista (Clerks, 1994). Enfim, Arremesso Final é um assombro televisivo e cinematográfico. Essa é, inclusive, a impressão deixada em sua sequência final.

The Last Dance termina da mesma forma que começou. Com um lietmotiv, uma rima visual que remete à primeira imagem da série: a de Michael Jordan nos dias de hoje, de costas para a câmera, contemplando a vista de sua mansão à beira-mar como quem reflete sobre o passado. A narração de um garoto entra em cena: “Eu só quero que a franquia e o Chicago Bulls sejam respeitados. Como o Los Angeles Lakers, o Philadelphia 76ers ou o Boston Celtics. Espero que eu… Que este time e esta organização consigamos criar um projeto assim”, diz ele próprio, ou um outro, ainda calouro, igual na ambição de ser o maior. O sorriso maroto que invade o seu rosto aos 21 anos ganha contornos de profecia. O sorriso discreto que invade o seu rosto após 35 anos é o sorriso de um herói rodrigueano: falho, orgulhoso, competitivo, vencedor. Um sorriso de missão cumprida. De que tudo valeu a pena afinal de contas e apesar de tudo. Essa é a conclusão de Arremesso Final. Um monumento à altura da vida, da carreira e da arte de Michael Jordan. Para o azar de LeBron James.

Comentários (1)

nelson rios dias | segunda-feira, 25 de Maio de 2020 - 07:59

Uma critica digna sobre esse fenomenal documentário.

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