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Críticas

Cineplayers

Perdição e resgate.

8,5

Expulso de um ônibus na metade do caminho com 1 dólar no bolso. A primeira cena de Anjo ou Demônio?, fantástica desde os créditos na estrada até o fim de noite no bar da cidade, poderia servir de introdução a qualquer noir. Eric (Dana Andrews) é esse protagonista duplo, nobre e cafajeste, de ações repulsivas e sonhos apaixonantes dividindo o mesmo estranho olhar num único frame. Não sabe para onde vai, pouco importa de onde veio. Tudo nele abarca dois sentidos, desde o mais insuspeito dos sorrisos às ardilezas explícitas que o governam (em se tratando de Preminger, nem nas iniquidades mais evidentes se pode confiar). Como tradicionalmente ao gênero em questão não interessa um parecer moral ou um atestado de idoneidade, Eric surge incólume como signo dessa extirpe maldita, de homens condenados a vagar sem memória pelo submundo de semi-mortos que é o noir ou engajados na romaria surda que é a vida, porque a necessidade de respirar sempre supera o motivo pelo qual se respira.
 
Eric, um a mais na manada, parece pouco interessado em descobrir os supostos benefícios de uma vida de tranquilidade, de um ideal de cotidiano familiar; ele vive a solavancos, a um impulso de cada vez. Porque Anjo ou Demônio? é um filme de impulsos, dos puros aos mais perversos. Todos que passam pela lente de Preminger nesses pouco mais de 100 minutos não hesitam em atender a cada exigência que o coração lhes faça como quem repete em transe o mesmo erro indefinidamente. Como em todo noir, o que sustenta a obscura atmosfera de Anjo ou Demônio? não é a foto low key sobre ruas desertas e bares esfumaçados, mas a presença maciça de uma esperança jamais correspondida.

A cidadezinha que Preminger inventou, berço desse desalento, é um lapso de tempo e espaço tomada a cada segundo do dia pela soma de uma sombria sensação de deslocamento físico com qualquer coisa de anacrônico, de antigo e não-nascido que coexistem como que por falha das leis do mundo, um território que não se permite encontrar a não ser por quem não o procura, por quem parou no meio da viagem por falta de dinheiro ou destino. Walton, como muitas cidades pequenas, é um alçapão de sonhos esquecidos, armadilha que captura pelo vício da inércia. Ergue-se aí, como reflexo (e condição de sobrevivência) dessa indeterminação espaço-temporal, uma esperança profundamente magoada, mas ao mesmo tempo perpétua e invulnerável. Os habitantes da cidade se deixam definir pelo modelo de esperança que criaram para si sem perceber que ele jamais pode ser cumprido, pois se o fluxo de tempo está morto e se as noções de espaço inexistem, nada jamais se permite alterar neste universo. Toda ação nasce estéril. A esperança, na medida em que conforta, é também uma cela, cumprida feito pena pelo bando de condenados.

Cada personagem em Walton debate-se nesse solo movediço em um desespero mudo, íntimo demais para ser notado até mesmo na opressiva dimensão da cidadela. Cada espera é uma espera aguda e solitária, conectadas inconscientemente uma à outra como que parte do feitiço que rege o equilíbrio do lugar. Pop espera o dia em que terá de Stella um único olhar livre de desprezo, Stella espera pelo homem que vá mudar sua vida, June espera para mudar a vida de um homem, Clara espera para ver a vida da irmã não mudar nunca, enquanto Eric, o objeto de ruptura, “anjo caído” do título inserido para corromper a simetria amaldiçoada desse limbo, está simplesmente cansado de mudanças. E cansado de esperar.

É lindo assistir à inconsistência das ações de Eric, contradizendo-se uma após a outra como quem implora a um deus ou qualquer entidade que o valha que lance uma direção apenas, pouco interessando se for a direção certa, desde que se possa sentir ao menos uma vez o simples e derradeiro sossego de quem sabe para onde vai. Preminger não revela jamais quais eram afinal as intenções do personagem de Dana Andrews, nem dá pistas de quê ele seria ou não capaz, muito porque talvez nem ele soubesse, ou, tal como na vida (mas raríssimo no cinema), trata-se de algo impossível (e no fundo, irrelevante). E se ela nunca tivesse morrido? Mais uma vez, foi a intervenção do acaso que lhe deu o rumo, de modo que é simplista responsabilizar o homem quando este é mero refém da correnteza.

Preminger usa um componente que é fundante do film noir contra o próprio gênero para destilar um final que ao mesmo tempo desacata e realinha tudo que já fora dito, escalando o pessimismo até revelá-lo como mero elástico para o mais otimista dos pontos de vista, como se a deriva trágica dessa roda-viva estivesse o tempo todo sob o controle de algum concatenador de sentidos, de uma tessitura racional, planificada, enredando uma razão maior que abraça de uma vez todos os arbitrários pormenores da vida. O argumento de Anjo ou Demônio? é de que a moral é um mito tão concreto quanto a liberdade, e que não existe direção se não a da expectativa de, no momento certo, sermos atropelados. Quando este momento chegar, todas as esperas cessarão, todas as buscas se darão por encerradas, e o despertar coincidirá com o abandono absoluto de uma vida que, se um dia existiu em qualquer aspecto diferente desta, é hoje não mais que uma rarefeita lembrança.
 
Anjo ou Demônio? é uma história de crianças perdidas e de resgate, de um elemento que passa imune à provação ética, que rejeita regras e conveniências, que absolve truques e transgressões, que cura e que restaura, porque como síntese da raça humana, este homem não passa de um errante que vagueia enlevado no próprio esquecimento até que encontre o objeto angular, imprescindível e constitutivo da vida: o amor.

— Para onde, querido? 
— Para casa.

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