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Amadas e Violentadas

(Amadas e Violentadas, 1975)
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Críticas

Cineplayers

Inversões

8,0

A “Boca do Lixo” paulistana ficou marcada na história do cinema brasileiro como um espaço de produção com algumas especificidades: teor erótico, baixos custos de produção e qualidade questionável. É verdade que tais características atribuídas aos filmes não são, a princípio, dadas como critério de avaliação. Basta pensar que o Cinema Marginal é valorizado por trabalhar com as condições de produção da “Boca” como forma de desordenar atributos do que seria um filme considerado “bom” (baseado em critérios eurocêntricos ou americanófilos), e a partir da precariedade dar lugar à esculhambação e ao avacalho. Dessa forma, diretores como Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci e Carlos Reichenbach, identificados com o Cinema Marginal, são valorizados no texto histórico do cinema brasileiro.

Por outro lado, outros realizadores que tiveram suas carreiras marcadas na “Boca do Lixo”, mas não são identificados como pertencentes a um grupo valorizado no cinema brasileiro (como é o caso do Cinema Marginal), não costumam ser lembrados com frequência. É o caso de Ody Fraga, Guilherme de Almeida Prado e Jean Garret, por exemplo. No caso de Garret, um de seus primeiros filmes foi Amadas e Violentadas (1975) e, desde então, era possível destacar que não se tratava de um diretor qualquer, mas de alguém com uma visão muito própria do cinema.

A elegância formal de Garret, marcante ao longo de sua carreira, está posta desde o princípio. No filme, sem muitas explicações, um homem mata duas pessoas que estavam em um quarto de motel. O que interessa, nesse primeiro momento, não é a causa dos assassinatos, mas a forma como eles são conduzidos. A partir de intensos close-ups e de um jogo intrincado de luz e sombras, Garrett dá uma dimensão de psicopatia ao homicida e acentua o desespero das vítimas. Trata-se de uma sequência marcante que será resgatada ao longo da trama.

Logo vem à tona que o criminoso se chama Leandro, um escritor burguês que está produzindo um livro policial a partir de casos verídicos. Os casos, claro, são orquestrados pelo próprio e sua condição de intelectual de classe média alta o torna uma figura acima de qualquer suspeita — mesmo quando aparece nos lugares em que cometeu crimes com a justificativa de estar investigando para o seu livro. Apenas uma mulher, repórter policial, acredita que Leandro pode estar por trás dos assassinatos, porém é desacreditada por um homem, o editor do jornal que faz questão de afirmar que a história da jornalista não tem fundamento.

O literato, protagonista de Amadas e Violentadas, é uma figura incomum aos típicos machões das pornochanchadas que povoaram a “Boca do Lixo” na época de realização do filme. Inclusive, David Cardoso construiu seu texto estelar com a figura do homem sedutor. Posteriormente, passou a ser considerado “O Rei da Pornochanchada” pela quantidade de filmes do gênero que costumava fazer. Leandro, por outro lado, foge completamente do estereótipo desenvolvido por Cardoso. O personagem tem problemas sexuais e, por não conseguir se relacionar com mulheres, ele as mata. O sexo em Amadas e Violentadas tem um caráter de dominação e, por não conseguir agir da forma como um homem supostamente deveria, o assassinato se torna a forma que Leandro encontra de ostentar sua suposta virilidade perante o sexo feminino.

Além de ser um escritor, Leandro também frequenta galerias de arte. Ali, inclusive, encontra outra de suas vítimas, uma fotógrafa que está fazendo uma exposição de seu trabalho que consiste em retratos do próprio corpo. Uma parcela da crítica brasileira convencionou uma desaprovação dos filmes da “Boca do Lixo” pela quantidade de sequências de nudez e sexo. Em Amadas e Violentadas, além do protagonista ter disfunção erétil, há poucas sequências de nudez. O momento em que essas sequências são mais explícitas é, justamente, na galeria de arte - com os personagens que constituem uma “alta cultura” econômica e intelectual. Como se Garret apontasse que não era apenas nos filmes da “Boca” que a nudez se perpetuava. Aquilo que uma parcela da crítica destacava como baixeza também se concretizava em ambientes ditos nobres.

Durante o coquetel dedicado ao novo livro de Leandro, um sujeito que comete pequenos furtos é preso pela polícia, acusado dos crimes cometidos pelo burguês. A partir de uma montagem paralela engenhosa, Leandro é aplaudido por uma classe média intelectualizada por um trabalho que ainda nem foi publicado enquanto o outro rapaz é punido pela polícia e trancafiado em uma cela por conta de um crime que não cometeu. Todavia, achou por bem confessar para não continuar a ser coagido pela polícia - que precisa encontrar um culpado a qualquer custo.

O mais curioso é pensar que Leandro mantém uma relação com os policiais, os conhece e conversa com eles normalmente. Em outra sequência marcante de Amadas e Violentadas, o escritor fala calmamente com um detetive sobre o assassinato que ele mesmo comenteu. Em um sofisticado plano-sequência, Garret oferece todo o tempo da ação dos personagens a caminharem demoradamente enquanto dialogam sobre os crimes. Os lugares onde as mais escabrosas situações acontecem não são apenas aos arredores da “Boca do Lixo” como quer a classe média preconceituosa, mas também acontecem nos espaços dedicados à elite, apontava Garrett com originalidade.

Dentre as situações hediondas que rondam todos os espaços sociais sem distinções, uma em particular vai alterar a vida de Leandro completamente. A jovem Marina aparece fugida de um orfanato. Ela afirma que uma seita satânica vai sacrificá-la, pois precisam de uma virgem para completar o ritual. Assim como o escritor, a menina é o oposto das personagens que são lembradas em filmes da “Boca”. Ela não é sedutora, não é objeto de desejo, pelo contrário, é a representação da puerilidade na Terra. Canta, dança e se impressiona com o que está ao seu redor como uma criança que está a descobrir o mundo.

Não é por acaso que a seita satânica está justamente atrás dela. Marina é o ideal da imagem virginal comum nas narrativas de horror. Não haveria qualquer pessoa para representar a inocência como a moça. A seita, no fim das contas, existe na trama para valorizar Marina como uma personagem realmente pura e sem intenções sexuais ou luxuriosas. Então, quando ela é raptada da casa de Leandro, resta a ele salvá-la. Mas proteger a moça também é deixá-la distante dele próprio.

Amadas e Violentadas é uma obra que quebra as expectativas e não escorrega em clichês. O filme, que desvenda e reformula estereótipos, é um dos primeiros trabalhos de um dos realizadores que mais marcaram “Boca do Lixo” com filmes considerados típicos das produtoras da região. Contudo, é necessário que Garret seja redescoberto para além de suas características - dadas como óbvias somente por conta do lugar em que comandava suas obras. Filmes que descaracterizam o que é comumente dado como óbvio em sua carreira existem e Amadas e Violentadas é uma prova disso.

Crítica integrante do especial Abrasileiramento apropriador do Halloween

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