“Tenho medo de que um dia você também me esqueça...”
Difícil um filme nacional abordar o período da ditadura militar sem cair em certos vícios que foram se acumulando sobre o tema ao longo dos anos em nosso cinema. Aquelas cenas chocantes de tortura, perseguição e barbárie dão lugar a algo muito mais sutil e eficiente em Ainda Estou Aqui (idem, 2024), que é o fantasma da ausência. Para muitos brasileiros, é isso que dói e que permanece de sequela até hoje: o não saber, estar fora de alcance do direito tão elementar de poder enterrar seus mortos.
Salles fez recortes da realidade brasileira ao longo de sua carreira porque entende que existem muitos brasis no Brasil e não tem a ambição de englobar todos eles num filme só, então recorre a recortes de tempos e lugares, períodos significativos para nossa história recente e o impacto disso sobre brasileiros comuns. Na época da retomada da produção nacional ele veio com uma avaliação da Nova República e do governo Collor em Terra Estrangeira (idem, 1996), em que também remexeu alguns esqueletos da ditadura e questionou a formação de nossa identidade enquanto nação. Em Central do Brasil (idem, 1998) mudou o recorte e fez um filme de estrada melancólico no qual foi recolhendo pedaços de histórias, trechos de cartas, ideias partidas de pessoas fragmentadas pela distância, pela saudade, pela miséria, num país desmantelado em desigualdades. Abril Despedaçado (idem, 2001) recai a atenção sobre a vida sertaneja nordestina no início do século XX e estuda um pouco das origens de muito da nossa formação social que reverbera até hoje. Linha de Passe (idem, 2008) se situa no Sudeste e versa sobre as periferias, a marginalização social, o sonho de liberdade dos garotos pobres com o futebol, a influência das transformações religiosas sobre o funcionamento das comunidades.
Em Ainda Estou Aqui ele retorna com mais um recorte, dessa vez uma história real baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva sobre a vida de uma personagem que todos entendemos como uma espécie de arquétipo da tradicional mulher brasileira: forte, mãe, guerreira, resiliente e sempre portadora de um sorriso impávido, não importa as dificuldades. Eunice é uma das "Marias e Clarices" que choram no solo do Brasil, que lutou para que a barbárie não fosse esquecida, para que seu marido não fosse esquecido. Assombrada pelo fantasma da ausência, do luto incompleto, o sentimento dela é muito bem traduzido pelo melhor trabalho de direção de Salles: a casa tão solar, repleta de músicas, preenchida pela correria e gritaria das crianças e pelas visitas dos muitos amigos, de repente se cala, murcha, esmaece, desbota. A partir do momento em que Selton Mello (no papel do ex-deputado Rubens Paiva) deixa o lar para nunca mais voltar, todo o tom, ritmo, estética e atmosfera até então delicadamente tecidos pela narrativa se rompem e aquele lobo atrás da porta dá o seu bote. O cineasta então reconfigura seus espaços, ressignifica cada um deles sob a meia-luz de uma família agora amputada e incompleta.
A memória é ambivalente e mutável em Ainda Estou Aqui, pode remeter tanto ao sofrimento de um período de horror e violência quanto a uma época anterior a esse mesmo sofrimento. O diretor foca muito na memorabília de fotografias e vídeos caseiros, cartas, registros de um tempo. Lembrar é uma benção e uma maldição ao mesmo tempo para Eunice, traz o conforto da companhia do marido na medida em que remete à sua partida precoce e covarde. Os desempenhos das Fernandas (Torres e Montenegro) são primordiais para captar o conflito da consciência humana dela. Mãe e filha na vida real, as atrizes dividem a mesma Eunice e cabe a cada uma oferecer o acúmulo do peso de um passado dosado de acordo com cada etapa da vida dessa mulher. Essa ligação de sangue que extrapola a ficção é o que oferece uma dimensão pessoal ao tom de toda a produção, o caráter intimista de uma história real, escrita por um membro da família Paiva e comandada por um cineasta que já dirigiu anteriormente mãe e filha em outros filmes, arrancando de cada uma performances memoráveis e agora juntando
as duas num reencontro com o passado.
Numa cruel ironia do destino, Eunice Paiva foi acometida pelo Alzheimer na velhice. Logo ela, que lutou a vida toda contra o esquecimento: tanto o de seu marido quanto o de um período maldito na história brasileira. A memória é viva, não é algo intacto no passado, interfere no presente e determina os rumos. Também pode ser traiçoeira, diminuir sofrimentos, apagar falhas, engrandecer afetos. O perigo da nostalgia pode interferir em nossa percepção do passado, relativizar os traumas, acender a fagulha da saudade, atenuar a gravidade dos acontecimentos. A mensagem reverbera para o Brasil de hoje: como indivíduos talvez estejamos sujeitos às ações do tempo e da vida, que comprometem nossas lembranças, mas a memória coletiva não pode ser apagada. O que aconteceu com nosso país nesse período sombrio vez por outra periga de se repetir, e para alguns isso chega a soar como algo positivo. Não romantizemos o passado a esse ponto, não descartemos as lutas de pessoas como ela.
Já dizia Dora, a personagem de Montenegro em Central do Brasil: "(...) tenho medo de que um dia você também me esqueça. Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo". Ainda Estou Aqui fecha uma ponte com esse filme através da mesma atriz, ainda sobre o medo do esquecimento, ainda sobre as saudades de um pai. Na cena derradeira, ela, já idosa e acometida pelo Alzheimer, demonstra um lampejo de reconhecimento ao ver uma reportagem sobre seu marido na TV. Uma mudança sutil no olhar, uma discreta linha de consciência brotando na testa, e pronto: sabemos que ela lembrou, que sua mente resiste e por vezes dribla a própria condição de saúde. Que ela ainda está aqui.
Lindo texto Heitor
Que crítica maravilhosa que consegue sintetizar essa obra e os melhores trabalhos do cineasta (assim como a relação entre eles) com uma sensibilidade exemplar