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1964: O Brasil Entre Armas e Livros

(1964 - O Brasil Entre Armas e Livros, 2019)
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Críticas

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A besteirada paralela do Brasil paraleloso

1,0

Documentário revisionista que busca impor uma narrativa histórica própria que deslegitime a vasta bibliografia sobre o tema, considerada como marxismo cultural por esta turma da nova direita. A galera do Brasil Paralelo.

Desde o nascedouro, o longa busca uma linguagem direta para com seu público alvo. Uma abordagem conservadora – faz sentido mediante o pensamento político de seus realizadores. O esquema talking head é seguido à risca. Foca no personagem, com fundos diversos, sem profundidade de campo. Aqui o discurso que interessa. A credibilidade daqueles que o proferem. Vinculando isto à "seriedade histórica" da narrativa simples, youtubestosa (se me permitem este neologismo vagabundo) – aliás antes de classificá-lo como cinema chamo-o de vídeo, pois isto que o próprio parece, um vídeo do youtube de 2 horas - que sirva de produto rápido de manipulação discursiva. Nada de novo. Tática conservadora, rasteira e eficaz, sem esquecer do caráter patriótico e de denúncia e sofrimento por perseguição ao pensamento contrário à esquerda. Tudo isso bem vendido desde o começo.

Há algumas escolhas de que são objetivadas para o entendimento, mas suas repetições sub-reptícias nos mostram uma natureza gratuita com algumas intenções, espertezas e outras são erros crassos. Alguns exemplos. 1. Narração off com a função de estabelecer um tom supostamente neutro para o espectador, onde começa por informar e vai se dedicando a servir com um opinioso crescente. 2. A imagem em scope (2.35.1) de nada serve. Não agrega. Escolha estética somente para padronizar a obra para exibição nos cinemas meio que querendo descolar do esquema vídeo de youtube que não conseguem se soltar (ao invés da dialética interessante ficaram com a óbvia contradição). 3. Os mapas. Demérito encontrado nos mais variados documentários e séries vinculados à história deste período. Porém muitos deles usam como função específica de linguagem para além da mera ilustração (algo que se repete nas fontes). Aqui não passa disso.

Fontes diversas. Uso clássico de imagens e vídeos de arquivo para denotar a pesquisa histórica e credibilidade. Tentativa e cópia de um esquema BBC, sem a mesma seriedade ou expertise. As fontes devem servir de salvaguarda e credibilidade para a obra e que sirva à linguagem, à narrativa e não somente como apropriação imagética ilustrativa, sensacionalista sempre que possível – vide a marmota com a foto do Sebastião Salgado, que na verdade é de 1986 na Serra Pelada, sem relação alguma com as ligas camponesas (mau-caratismo e pilantragem ou incompetência?). Sem falar da tentativa de precisão da modernidade diversificada. Carregando o teor modernoso, tem até o uso de uma conversa privada de messenger de rede social como fonte. Muitos consideram isso mera patetice. Eu incluso.

Estabelecimento de temas. Existe aqui a intenção de representação de um mosaico que permita um entendimento mais invocado dos antecedentes no Brasil. Obviamente a citação do totalitarismo é usada como momentum preambular do discurso da ameaça comunista no Brasil pré-1964. Então por opção dos realizadores há a explanação e exploração da Guerra Fria, 2ª Guerra Mundial e até a Revolução Russa. Isto dentro da narrativa que venha a corroborar, sem pressa, com a ameaça comunista que pairava pelo planeta e como tal coisa era diversificada e rebuscada no que envolvia trocas de poder, relações culturais e espionagem propriamente dita. Uma obra que vende uma verdade histórica, “aquela que teus professores não te contam”, e é seguida à risca sem a imparcialidade objetiva vendida no início - uma venda esperta pra chamar público.

O discurso da suposta imparcialidade cai por terra, o tempo todo, quando vemos um tratamento diferenciado, e metido a espertinho, no tocante às personalidades históricas. Onde figuras como Winston Churchill, conservador respeitado, visto pelo filme como um salvacionista ímpar, usado aqui como um depósito de confiança no discurso. Tático. Na outra ponta vemos as figuras mais esquerda tratadas ora como escrotos abertamente, no caso da tríade soviética (Stálin, Lenin e Trotsky), ora como caricaturas. Jânio Quadros é um. No início ele é afirmado como populista da UDN, sem vínculo direto com esquerda ou direita, mas no momento que é dito seu contato com o comunismo vem o caráter de brincadeira e sátira. A música deixa isso claro, a estratégia musical de choque, tons graves pra denotar o caráter de gravidade, tensão e violência quando cita a guerra fria, vai na outra esfera com o tom jocoso quando trata personalidades que se quer avacalhar. Uma manipulação básica de linguagem pra influir sentimento de deslegitimidade no personagem tratado para o expectador. Além disso há certa confusão quanto a algumas figuras. É dito que a esquerda queria o Jango talvez como fantoche, depois que ele era ligado aos comunistas, e que era íntimo de espiões tchecos, e ainda que a esquerda não o queria e nem o chamaria de volta ao país. Nisso o filme não se decide. Jango é tratado na mais absoluta confusão. A intenção do filme é esta mesmo? Ou faz parte das contradições que a própria obra comete?

Utilização de “especialistas” em história. Apresenta jornalistas, comentaristas em geral, pesquisadores, um astrólogo, e um historiador oficial. Rafael Nogueira. O tom dos discursos é similar nos questionamentos políticos que ensejam nas intenções do filme porém o roteiro peca pela falta de congruência. Não que o mesmo tenha de ser uníssono, mas entrar em contradição com a narrativa que inventa é de lascar. O filme passa uma hora afirmando o absurdo da ameaça comunista que não só rondava o país, mas conspirava dentro do mesmo. Porém quando começa a falar explicitamente de 1964 afirma, pelas vozes de seus entrevistados, que não houve resistência alguma e que "a revolução foi um sucesso em 24 horas", como afirma um deles. Ora aqui existe um problema de discurso grave. Alguns defensores da obra podem querer atestar a liberdade de espaço dos entrevistados. Eu vejo da seguinte forma, esta confusão é pra afirmar que existia sim uma ameaça perigosa já dentro do país, porém as forças conservadoras, militares e civis, heroicas obtiveram rapidamente êxito contra seus inimigos. Fácil assim? Não cola.

O filme afirma tecnicamente a existência de um golpe, de uma ditadura, a partir de 68. Pondo em pauta a atuação da linha dura no processo. Porém sem deixar de citar que o recrudescimento também se dera como reação às guerrilhas. O atentado no Rio Centro que fora "Coisa da linha dura e não da extrema esquerda", segundo Lucas Berlanza. Anistia. Ampla, geral e irrestrita. Borracha para os dois lados. Estes temas são tratados formalmente diante do senso comum. Negar a ditadura é uma figuração de uma direita anacrônica e virulenta. A ala neoconservadora, à brasileira, que tem o anseio ultraliberal como pauta, vê a defesa de algum autoritarismo velado e histórico como embaço pro mercado mais aberto (funciona somente para uns). Por isso que o caminho escolhido é de certo cuidado, apontando problemas do exército na condução do país, incluindo seus exageros, e sem que se avacalhe a instituição. De que adiantaria bater de frente com uma bibliografia vasta neste ponto (um dos principais), negando a ditadura? Além do que, isto vende o caráter de respeito ao contraditório. O filme aqui tenta ser esperto.

A questão da documentação da Tchecoslováquia. Discorre inicialmente sobre a bibliografia farta que discute a influência americana na ditadura militar e que não falaria do lado soviético da situação (a não ser o Olavo de Carvalho, que é citado nisso por Mauro Abranches). Ou seja, o filme busca uma cobrança histórica em seu discurso, porém ele mesmo em sua duração não busca ser coerente com o modus operandi que defende. Questão de roteiro e narrativa. Mas aqui temos o melhor momento do filme. Mais sério e consistente. Mesmo com a estética de sempre presente. Mais funcional e coesa, é bom afirmar. Talvez pela curiosidade temática deste trecho, desconhecido no Brasil. Elemento do filme que invoca o tal compromisso com a verdade. Funciona, ainda mais pela pilantragem. A montagem escolhe trecho da entrevista no qual Mauro Abranches, pesquisador sobre o material de espionagem tcheca, afirma que isso era somente material tcheco. Que de outros países citados nos documentos poder-se-iam provocar mais rebuliços sobre espionagem no Brasil.

Usufruto interpretativo histórico. Existem algumas incongruências históricas aqui usadas em benefício da narrativa. São escolhas de roteiro, que se não tendenciosas são de um esquecimento de material notável. Claro que tudo isso é proveniente de uma escolha política, narrativa e histórica, sempre repito. Citarei algumas. 1. Fala do poderio atômico soviético como um absurdo perigoso apontado para o mundo, sem por o contraditório à baila. O americano era tão perigoso quanto, porém tem-se o cuidado de citar de leve a corrida armamentista. 2. Espionagem e propaganda soviética. Trata como se isso fosse quase que inventado pela URSS. KGB. Mas e o FBI e a CIA? Cita rapidamente o envolvimento da inteligência americana. Em uma frase. Aqui como usufruto da argumentação da imparcialidade. São observações que o filme faz pra não se perder na caricatura. 3. Fala do governo de Nikita Khrushchev como um mero continuismo stalinista, porém ele era um crítico de Stalin, como no segundo Congresso dos PCUS em 1956 onde expunha o caráter totalitário e violento do Stalin. E tido numa pior relação com os EUA, do que no período stalinista e mais do que com seu sucessor, Leonid Brejnev, da ala mais radical que recrudesceu relações e foi partícipe da guerra do Vietnã, que começara a vera após a saída de Nikita em 1964. O Khrushchev só fora citado pela instalação de mísseis soviéticos em pontos estratégicos na crise dos mísseis em Cuba. E quando rolou mísseis americanos na Turquia e na Itália antes? Cadê a citação desse tão imparcial documentário? 4. A intentona comunista tida pelo filme como tentativa de implementação do poder comuna em 1935. Mas esquece de discorrer sobre o total fracasso dela devido a falta de alinhamento político no Brasil de uma galera que viesse a aderir a causa. 5. Inclinação à esquerda com JK? Patético o argumento (de Alexandre Borges chefe do Instituto Liberal) do fato de o projeto ser de um esquerdista (Oscar Niemeyer era comunista convicto) como algo decisivo. "Tirar a capital de perto da população" como tática esquerdista. Mas é sabido o caráter faraônico de JK, desde o governo dele em Minas, e que uma capital mais distante do povo é algo tático independentemente de esquerda ou direita. Washington? Alguém? 6. A mentalidade desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck é citada. Os gastos públicos. Engraçado que não falam da abertura à multinacionais no país. Um elemento absolutamente capitalista e expansionista, mas beleza. 7. Rafael Nogueira, o historiador oficial do filme, afirma o caráter não democrático da pressão, por ele citada, exercida por Jango nos trabalhadores para embaçar o congresso. O mesmo congresso que não deixara Jango governar diante da implantação do parlamentarismo. E a suposta pressão vinha pelas questões das reformas de base que o presidente queria encampar e que tinham aprovação de boa parte dos trabalhadores, ou seja, a não-democracia na situação tem uma nomenclatura específica de um lado. 8. Rafael Nogueira tira a importância da resistência do Brizola quase como se o político tivesse pouco apoio e logo morreria em conflito, e por medo não acionou a vera o terceiro exército que estava com ele. Não explicitam que Jango que não quis o derramamento de sangue e com Brizola sobre isso conversara. O "abandono" dele. 9. A perigosa guerrilha aparece. Retomada da temática das ligas camponesas. "Terrorismo Revolucionário". Tortura e morte. Não entra no caráter inofensivo em termos práticos nacionais das movimentações de guerrilha de inspiração cubana e chinesa, com o Carlos Marighela como um dos principais artífices. Táticas que não levaram em consideração, clima, exército e território brasileiro. Araguaia fora um massacre e não um combate. Havia uma discrepância imensa entre guerrilheiros frente a um exército bem treinado. 10. São postos em pé de igualdade na fita a atuação criminosa dos movimentos revolucionários ao estado brasileiro com toda sua infraestrutura e treinamento. O faz de maneira gaiata. Põe os mortos em números - 119 mortos pelas guerrilhas e 336 - 424 pelo estado. Age de forma condescendente com o estado. O que interessa aqui não é 1964, mas sim inscrever a esquerda como malefício absoluto. Os artifícios estão aqui exatamente pra isso. 11. Demonização de Gramsci e o Marxismo Cultural. Acusacionismo do genocídio das ditaduras da esquerda. O filme propõe o caminho da hegemonia cultural. Onde o Brasil "foi país foi mais gramscista do mundo", segundo Fravio Morgenstern. Ele imputa que termos de luta como machismo, racismo e homofobia são gramscistas. Sendo que a discussão surgiu antes da popularização das ideias do Antonio Gramsci. A década de 60. Nem preciso dizer o tamanho deste reducionismo. 12. Filme propõe estudantes como massa de manobra da movimentação contracultural. Mas e massa brasileira manobra da na ditadura? Doze pontos. Era pra ter dado 13 só pela putaria.

Se você chegou até aqui, pacientemente, deve ter percebido a montagem absolutamente dura e grosseira do texto. Parágrafos absolutamente marcados, com uma relação solta de estarem falando do mesmo filme objetivando relações de linguagem, história, poder e narrativa. A minha intenção era exatamente mimetizar o que senti no filme. A obra sofre de falta de unidade, também por conta da superficialidade da maioria dos subtemas, que são muitos, o que acaba por avacalhar o todo. Com uma montagem temática bem episódica que consegue informar como um vídeo em blocos, mas não consegue se vender como obra cinematográfica e tudo que isto implica. Faltou aqui mais gabarito de linguagem. Creio que o discurso de informar era mais importante, como já afirmei antes, tanto que a simplicidade é óbvia e visa o alcance maior possível, ainda mais num período onde conservadores empunham bandeiras de forma mais veemente. Precisam de informação divulgada direta e supostamente bem embalada. O juntar das partes, como cinema, não encaixam como até poderiam, mas não interessa. O zunir e o coaxar são, absolutamente, mais importantes pra esta turma.

"É a mentira que de tão repetida, tornou-se história", é dito. Fabrico de uma narrativa histórica que tem o usufruto de adaptações e liberdades históricas, com fatos embaçados, conspirações e contradições. Critica o discurso de defesa da ditadura do proletariado, e usa de demagogias e desinformações quando sua narrativa caminha na criação de sua versão. A direita ultraliberal conservadora. Nova moda. Costumes de direita, mantendo a conservação social, unidos com a prerrogativa do capital que não enseja exagero do estado. Uma gororoba unida contra a esquerda, é o campo de luta que é apresentado. Ao final mostram aqueles de esquerda que foram presos. Os tais heróis maiores. José Dirceu e Lula. Os mais proeminentes presos do PT. A ideia aqui é deslegitimar o pensamento da esquerda como um todo, como se estas lideranças falassem pelo todo. Afirmar que este pensar é meramente oportunista e corrupto, que moderno, substituíra o caráter assassino de outrora. “Num tempo de engano universal, dizer a verdade é um ato revolucionário", frase de George Orwell pra finalizar o longa, que bem que poderia tê-la seguido à risca dentro de si. A usa somente como simulacro de isenção de suas proposições políticas. A intenção da obra é clara. Vende sua história com seu direcionamento político. Democrático. Cada um com a sua besteira. E esta aqui é uma bosta imensa.

Texto escrito em abril de 2019, e agora postado devidamente com o intuito de esculhambar.

Comentários (6)

Horror/Terror | terça-feira, 16 de Fevereiro de 2021 - 15:15

Isso foi tudo, menos uma crítica.

Ted Rafael Araujo Nogueira | terça-feira, 16 de Fevereiro de 2021 - 15:44

Ótimo. Que interpretem o material das mais diversas formas. Maravilha.

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