Facilmente, Wes Anderson pode ser considerado um dos realizadores mais idiossincráticos do Cinema. Aficionado por planos milimetricamente arquitetados e por visuais em que o arrojo salta às retinas, além de adicionar sujeitos extravagantes à sua galeria a cada novo filme, ele segue angariando entusiastas em uma frequência próxima à dos esnobadores. Em O grande hotel Budapeste (The grand Budapest hotel, 2014), suas insígnias marcam presença, tornando-o identificável como sendo seu nos primeiros minutos. A trama a ser apresentada dessa vez se passa em boa parte no hotel que intitula o filme, alguns anos antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Administrado com ironia e elegância pelo Monsieur Gustave (Ralph Fiennes, impecável), o local tem seus hóspedes assíduos, em parte pela recepção inigualável desse gerente. Entre eles, a surpreendente Madame D. (Tilda Swinton), uma octogenária muito da saidinha que não troca uma suíte ali por nenhuma outra em qualquer outro hotel. Depois que morre, Gustave descobre que ela lhe deixou de herança um belo quadro renascentista: O Menino e a Maçã, que vale milhões.
Antes de receber a ótima nova, porém, ele está ocupado instruindo um novo funcionário do hotel, conhecido como Zero (Tony Revolori, na juventude), um refugiado indiano que logo se torna seu amigo e cúmplice e é o narrador de quase toda a história na fase idosa, quando é conhecido como Mustafa e é interpretado por F. Murray Abraham – que havia tido a mesma função em Amadeus (idem, 1984), em que viveu o maestro que morria de inveja de Mozart. Ele conta a um jovem escritor (Jude Law) as várias peripécias que viveu na companhia de Gustave, a quem via como um preceptor cheio de ensinamentos transmitidos com muita presença de espírito. Diante do interesse crescente daquele homem na história, Mustafa não economiza detalhes, que nada mais são do que os hábitos de Anderson como cineasta desfilando pelos fotogramas. A começar pelo aspecto imponente do hotel, que se ergue sob a fria paisagem húngara, passando pelos interiores luxuosos e pelos funcionários vestindo tons violáceos, tudo é de empapuçar os olhos. Somos tomados pela mão e convidados a fazer parte daquela curiosa fauna por pouco menos de duas horas.
É bem verdade que muito que nossa visão testemunha é fruto de um trabalhoso uso de efeitos especiais, mas Cinema é justamente esse encanto de viver uma história que é pura ficção, mas que compramos por sentir um mínimo de empatia com seus personagens. Anderson é sempre bem-sucedido nessa empreitada, oferecendo protagonistas carismáticos, ainda que jamais se mostrem como um poço de virtudes. Gustave, por exemplo, é capaz de pequenos desvios de conduta para alcançar vantagens pessoais e tem a fidelidade de suas clientes mais velhas assegurada por expedientes não muito ortodoxos, por assim dizer. Quando percebe que pode ficar sem o quadro herdado de Madame D., não hesita em roubá-lo da mansão, contando com o auxílio de Zero para escapar impunemente. Uma curiosidade que os mais atentos perceberão é que a pintura deixada por Zero no lugar da obra roubada é de Egon Schiele, pintor favorito da Emma (Léa Seydoux) de Azul é a cor mais quente (La Vie d’Adèle, 2013). O que isso tem a ver? Simples: a intérprete da garota de cabelos azuis está aqui também, dessa vez no discreto papel de uma das empregadas da casa.
Enquanto Zero Mustafa vai compartilhando suas memórias afetivas com o escritor – e, por conseguinte, com a plateia -, os parceiros habituais de Anderson vão surgindo como personagens que lhes cabem muito bem. É uma pena que, com tantos nomes figurando no elenco, a maioria deles sejam apenas coadjuvantes de luxo. Swinton, já citada como Madame D., não chega a ficar 10 minutos em cena, e outros como Bill Murray e Owen Wilson, que já tiveram status de protagonistas em obras pregressas do diretor, dão as caras em aparições fugidias, mas não destituídas de importância. O primeiro ajuda Gustave e Zero em uma situação decisiva, ao passo que o segundo se torna peça importantíssima no hotel a partir de certa altura. Ainda sobra espaço para Edward Norton, que parece ter se tornado mais um dos seus queridinhos depois de Moonrise kingdom (idem, 2012), ótimo na pele de um comandante que livra a cara de Gustave durante uma viagem de trem. Cada qual ao seu modo, os personagens de O grande hotel Budapeste são adoravelmente insanos, e todos compartilham características que, em última instância, parecem o olhar do diretor para a vida: raríssimos sorrisos, quase todos de canto de boca, provérbios e máximas, improvisados ou não, embebidos em um senso de humor cáustico.
Se os companheiros de outras viagens ratificam o mérito do pertencimento ao universo particular de Anderson, os novatos nessa história outros que só haviam feito parte de uma aventura não fazem por menos e vestem muito bem a carapuça, como Willem Dafoe, o horrendo Jopling, que parece ter sido escrito sob medida para ele, um especialista em sujeitos irascíveis e ameaçadores. Aprontando poucas e boas contra Gustave, ele detém o posto de vilão da história. E o que dizer do lendário Harvey Kietel defendendo o papel de Ludwig, um presidiário exímio desenhista de mapas que tem um plano perfeito para deixar a cadeia? Todos juntos cooperam para a beleza imperfeita do conjunto da obra que, a exemplo das demais assinadas por Anderson, racha público e crítica. Para uns, sobrou cuidado na caracterização dos personagens e na arquitetura dos espaços e faltou capricho na elaboração do roteiro. Outros, como o autor desta crítica, enxergam uma forte humanidade sob os traços cartunescos de cada um e se divertem com as autorreferências que o realizador espalha em cada canto de sua trama frenética. É possível ir ainda mais longe e afirmar: amar um filme como O grande hotel Budapeste ou quaisquer outros da filmografia de Anderson diz muito sobre a personalidade do espectador, talvez mais do que sobre a dos que os rejeitam ou não se entusiasmam tanto com eles.
Quando as filmagens do longa estavam por se iniciar, Anderson comentou que sua proposta maior era homenagear as comédias dos anos 40, sobretudo aquelas feitas sob a batuta de Ernst Lubitsch, o que se reflete inclusive no formato de tela utilizado, mais estreito que o de hoje, incômodo em potencial que pode ser contornado após alguns minutos, quando a plateia se acostuma ao detalhe. Com efeito, não há nenhuma roda inventada aqui, e O grande hotel Budapeste se mostra o grande parque de diversões do diretor, com uma estética irreproduzível e deliciosamente bizarra que encontra respaldo nos atores em estado de graça, aos quais já foram tecidos alguns elogios nesse texto tão repleto de adjetivos – um mal de que é difícil escapar quando os dedos que digitaram são de um dos integrantes do clube de “andersonmaníacos”. É metalinguagem pura e assumida, meus caros. Um mergulho em um mar de memórias e junções no espaço-tempo que ganha tons e formas variados a depender do grau de aderência do público à proposta. Se não é o melhor filme do cineasta – esse título ainda pertence a Os Excêntricos Tenenbaums (The Royal Tenenbaums, 2001) -, faz muito por onde ganhar um lugar no pódio de sua cinematografia preciosa.
Que bom que gostou, Ricardo! Agora estamos quites! 🙂
Adorei o texto. Não sabia da ligação com Azul é a cor mais quente. Dafoe já é dos melhores vilões do ano.
Seu xará, você tinha que gostar hahahaha
Obrigado pela leitura, amigo!
Excelente texto mesmo, um dos melhores do ano até agora!