PERIGO DE SPOILERS
Eu entendo as questões éticas que aparecem em torno do filme, como se fosse uma apologia ao personagem culpado, mas acho que essa é uma artimanha muito safa do Linklater, por saber que democratas e republicanos veriam o filme e tornar assim os personagens menos maniqueístas (o que é muito fácil resvalar no cinema norte-americano). Existem dois pontos de vista, portanto, e nenhum está exatamente certo ou errado, é bom ou mau. Há algo a mais a se supor.
Por outro lado, e é isso que nos cativa neste filme e em boa parte da obra do Linklater, é como ele se apropria de outras linguagens, ditas menores, para compor seu filme. Em Bernie (2011) temos um mockumentary com características de filme policial para tv. Nos hipermodernos capítulos da saga romântica Before Sunset (1995), Sunrise (2004) e Midnight (2013), imitam as técnicas do "ao vivo" derivada da TV, e o contemporâneo "live", antes de sua popularização... e sem contar que são Estórias, verdadeiros romances que Deus me livre de trombar com um 50 tons qualquer da vida. Apesar de seu 'frescor' da técnica do instantâneo nos três filmes, que são entre períodos de momentos definitivos na vida de um casal, é exatamente aqui que o diretor conta com a sapiência e o background do know how (tudo em itálico) do superavançado espectador de cinema contemporâneo (ou seja, nós) para saber que tudo aquilo ali é faz-de-conta, jogo de teatro, os atores (Ethan Hawke e Julie Delpy) são inclusive creditados como roteiristas, provavelmente para aproveitarem qualquer golpe de improvisação espontânea.
Boyhood (2014) é um reality-show, um recorte (edição-montagem) fantástico da vida de alguém...
Bernie, o personagem (fictício e real) é um outsider, alguém que num ato falho comete um crime (como Marion Crane relapsamente a fugir com uma mala de dinheiro do trabalho no início de Psycho (1960), mas que mesmo assim consegue continuar sendo amado por todos ao seu redor. O filme de Linklater não poderia ser outro, ao colher todos os relatos de quem o conhecia e apresentá-los como prova em modelo documentário num filme ficcional, com atores 'playing' os principais papeis, em história baseada em crime real.
O papel de criar monstros, a tv cumpre com extrema habilidade. O cinema parece humanizar a tudo que toca. Mais uma vez, o interessante é a dialética desses dois pontos de vista.
Existe cinismo no filme? Existe, mas de todos os lados, mocinhos (o delegado ou Bernie?), vilões (Bernie ou Marjorie interpretada por Shirley Maclaine?) e não do tema ou pelo menos da recriação caricaturalista que estamos habituados a receber do Texas com suas regras próprias - cinismo de uns, verdade de outros -, mas da forma do filme, o que para mim, é positivo.
A história relatada, os depoimentos sobre Bernie, são apresentadas por quem o conheceu de perto e todas as questões polêmicas são postas a questionamento, a preocupação de Linklater, além de capturar aqueles personagens extraordinários e trazê-los a luz do dia é (re)apresentá-los da melhor forma. Não caberia aqui atores fraseando e imitando tiques dos originais, além de permitir esse "acesso direto à fonte", aos viventes desses fatos (um encontro entre o ator Jack Black e o personagem real será mostrada nos créditos finais).
Dito isso, este filme não irá mudar a vida de ninguém, é apenas um divertimento (como QUALQUER outro filme) sobre um fait divers, como dizem os franceses sobre as notícias. O charme (e o sentimento de cinismo talvez) derivam do fato da abordagem popular, em alguns momentos manipulados - mas visivelmente manipulados para a apreciação do espectador - onde observamos, antes de tudo, tipos e seus jogos de linguagem. O cinema é um jogo de linguagem.
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