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Notas de uma provocação político-cinéfila

No bojo de sua euforia dominadora, a burguesia desenvolve mil e uma máquinas e técnicas que não só facilitarão seu processo de dominação, a acumulação de capital, como criarão um universo cultural à sua imagem. Um universo cultural que expressará o seu triunfo e que ela imporá às sociedades, num processo de dominação cultural, ideológico, estético. Dessa época, fim do século XIX, início deste, datam a implantação da luz elétrica, do telefone, do avião, etc., etc., e, no meio dessas máquinas todas, o cinema será um dos trunfos maiores do universo cultural. A burguesia pratica a literatura, o teatro, a música, etc., evidentemente, mas essas artes já existiam antes dela. A arte que ela cria é o cinema.”

Jean-Claude Bernardet, ”O que é cinema” (1980)

 

 

Não existe uma técnica cujo significado a ela pertença naturalmente. Ou seja, a sua significação não é intrínseca à sua existência. Quando o cinema surgiu, em um contexto de efervescência criativa diante de uma sociedade bombardeada por hiperestímulos e essencialmente em resposta à cultura moderna, fundamentava-se na atração. O que interessava, de fato, era o poder da máquina em capturar as imagens em movimento, conferindo-se um caráter exibicionista ao chamado Primeiro Cinema. A falácia de que o cinematógrafo tinha por si só um poder de recriação do real veio a ser derrubada pela historiografia do cinema nos anos setenta, já que não se observa tal preocupação na produção cinematográfica de 1895 a 1908. Muito poderia se discutir sobre a capacidade (ou não) da máquina de reproduzir o real pela sua captura em movimento, mas a noção de impressão da realidade no Cinema formulou-se com a criação da narrativa clássica hollywoodiana.

Essa transição do cinema pré-narrativo para o narrativo se deu por uma necessidade de atribuir ao cinema o status de arte – atraindo também a classe média para as sessões. A nova produção rapidamente se apropriou de um discurso moralista para a formação de sua identidade, sendo Griffith o seu maior representante, buscando adaptar peças de teatros e romances burgueses famosos às telonas. Com isso, valores morais eram reforçados para a classe trabalhadora, público dominante à época, em uma relação vertical. Assim, a burguesia funda todos os aparatos possíveis para a criação de uma arte sua, desenvolvendo uma linguagem cinematográfica capaz de tornar sua ideologia implicada nos filmes turva, e, justamente por isso, tão forte.

O cinema narrativo-clássico hollywoodiano, portanto, se vale da impressão de realidade. Através de uma montagem invisível, com cortes sutis, e de uma câmera que não se faz ser percebida, a burguesia esconde todos os processos de criação constituintes de um filme, buscando uma unidade espaço-temporal. Intenciona-se anular um ponto de vista: a obra seria fruto não de alguém, mas uma força que emerge espontaneamente da natureza. Não seria a reprodução do real, mas o próprio real. A impressão de realidade, que marca fortemente todo o cinema narrativo clássico (com inúmeros movimentos de resistência no caminho, evidentemente) e resquícios fortíssimos no moderno, é uma forma de imposição ideológica da burguesia, através da naturalização dum discurso. Concomitantemente, Hollywood apropria-se da individualização do personagem no teatro burguês para formular o star-system, também uma forma de dominação.

 

Histórias Cruzadas

 

Quando um filme contemporâneo feito Histórias Cruzadas (The Help, 2011) perpetua a impressão de realidade, esconde um discurso estereotipado, baseado em segregação, através de uma embalagem pronta de “garota branca salva negros”. Essa desvirtuação da verdadeira ideia acontece por meio do sistema de celebridades, posto que o filme concentra-se mais na jornada da protagonista branca de classe média e em seu romance teen do que no drama das mulheres negras. Em Carta a Jane, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin confrontam diretamente essa transparência da imagem, mostrando justamente como o estrelato se apropria do ator enquanto símbolo ao analisar uma fotografia de Jane Fonda no Vietnã. Na imagem, observamos a atriz em foco, enquanto o vietnamita ao fundo, vítima do drama supostamente retratado, fica desfocado, numa completa inversão de importância na luta revolucionária. Através de um sistema de estrelas, Hollywood esvazia discursos e banaliza mensagens. Padronizou-se um estilo de atuação cujas expressões dos atores nada dizem, adquirindo significado pelo efeito Kulechov, ao contrário das atuações materialistas do cinema mudo, onde cada expressão era particular do ator. Herdeiros do formalismo russo (integrantes do grupo Dzigra Vertov), os diretores negam completamente o modelo stanislavkiano, enxergado como uma forma de reiteração da farsa hollywoodiana e uma parte fundamental na engrenagem da impressão de realidade. 

Em Tout va Bien, Godard busca, através de uma obra de ficção, questionar justamente esse modelo hollywoodiano representativo. Iniciando a obra com a assinatura de cheques da produção do próprio filme, Godard quebra de imediato qualquer mimese do real, aludindo ao próprio caráter de ficção do filme. É a autoconsciência da arte enquanto arte. Durante toda a projeção, essa unidade espaço-temporal do cinema narrativo é quebrada, saindo constantemente do universo diegético, com a inserção da imagem estática de um pênis no meio do filme ou com a inserção de um áudio exterior à situação da cena, por exemplo. Toda essa exposição do filme enquanto filme - e não realidade - suspende o espectador da condição alienante e letárgica na qual fora domesticado pelo cinema dominante. Tout va Bien, portanto, assume-se enquanto discurso, visão de alguém.

O que está em jogo, assim, é a representação do discurso ideológico. Essa discussão permeia toda a construção do filme. Desde o início, coloca-se em crise a necessidade da vedete para a viabilização do filme e a redenção ao romance melodramático para se que se possa, no fundo, falar de questões políticas; a desconstrução da unidade espacial, revelando a estrutura dos cenários, filmados à distância a fim de expor uma realidade que não a dos diretores; a quebra da quarta parede para que os discursos sejam ditos diretamente para o espectador sem evitar um conflito de pontos de vista entre eles; a repórter que é acusada de distorcer as palavras de uma operária, ou a reclamação de um operário sobre o retrato que a mídia faz das fábricas: o compadecimento com as condições deploráveis de trabalho, sem nunca haver foco nas lutas.

 

Cena de Tout va Bien

 

Em Tout va Bien, Jane Fonda encarna justamente esse conflito. Qual seria, portanto, o papel do artista – ou do comunicador social – na revolução? Se não protagonista a luta (algo muito nítido quando Godard constata que na imagem do rosto do negro marginalizado ou do vietnamita colonizado há um significado inerente e indissociável que revela muito sobre ele mesmo sem sabermos suas condições sócio-políticas ou espaciais), poderia contribuir assumindo um posto de distância; admitindo não conhecer as dores dos explorados, mas podendo ajudá-los com sua notoriedade. Eisenstein diria, em pleno processo revolucionário na Rússia, que o artista deveria focar principalmente a emancipação das massas pelo choque na montagem. Glauber defenderia que a arte revolucionária deve se valer duma forma revolucionária – e, no caso do Brasil, anti-imperialista. De certa maneira, estavam cobertos de razão.

****

Em tempos não-revolucionários como o nosso, ou, pelo menos quando querem que acreditemos piamente nisso, os artistas servem como uma espécie de canalizadores dos problemas sociais. E são, geralmente, do setor em decadência da classe média. Dificilmente encontraremos cineastas em ascendência econômica plena. E na atual situação sócio-econômica em que mesmo os artistas dessa classe privilegiada encontram dificuldades para financiamento de seus projetos audiovisuais (no mesmo país onde o Estado fornece 4 milhões para Luan Santana sair em turnê), quem sofre mais radicalmente com os problemas econômicos acaba sem uma formação própria para a criação de um pólo cultural. Aliás, não. Essa é uma visão preconceituosa e precipitada, quebrada sem muitos esforços pelo rap brasileiro, por exemplo. O que falta é o espaço ou a oportunidade para alcançar os meios de financiamento.

Em que interessaria, afinal, para os beneficiados por leis de incentivo à cultura uma luta de expansão desse benefício? Ou seja, buscar levar não só esses financiamentos às periferias e ao interior (leia-se, aos que nunca foram protagonistas culturais no Brasil, salvo exceções), mas também o aparato que lhe simplifique o acesso. Seria ingênuo pensar na burocracia dos Fundos de Cultura e afins como excesso de cuidado. Trata-se muito mais de um processo seletivo que mantém os que sempre fazem cinema no país, barrando quem está fora do jogo econômico e cultural.

O artista de esquerda tende a se acomodar atualmente na posição de porta-voz de problemas sociais que de fato o afligem. No entanto, os que sofrem mais intensamente as consequências do processo de desigualdade social do capitalismo permanecem sem voz ou sem acesso ao seu capital financiador. Não que eu defenda o estatuto da arte enquanto mercadoria – jamais. É apenas uma análise da conjuntura econômica na qual estamos inseridos e dos seus pequenos e possíveis processos de mudança. Portanto, não basta realizar um cinema revolucionário em forma e conteúdo sendo a classe dominante a única a ter a possibilidade, ainda que escassa, de capitalizar os recursos para produção e exibição. Há de se militar também por uma ampliação do acesso, pela democratização de recursos, por uma revolução profunda.

 

Godard

 

Dito isso, talvez fosse pertinente para Godard, ao lançar um olhar sobre o Brasil contemporâneo, reformular a sua pergunta: teria o artista revolucionário se tornado a contra-revolução?

Comentários (26)

Chcot Daeiou | domingo, 01 de Março de 2015 - 22:01

O segundo movimento do texto começa quando afirma "A impressão de realidade, que marca fortemente todo o cinema narrativo clássico (com inúmeros movimentos de resistência no caminho, evidentemente) e resquícios fortíssimos no moderno, é uma forma de imposição ideológica da burguesia, através da naturalização dum discurso."
Falamos em Neo-Realismo e Cinemas Novos no mundo inteiros a partir de 1940-1960, e o texto lembra exitosamente que se há um "neo-realismo" no cinema, ele ainda é bastante carregado dramaturgicamente - pelos processos naturalistas do cinema - da impressão de realidade - relismo. Para mim, se pudéssemos fazer uma dissecação do cadáver, o grande fator de novidade "neo" seria pela nova espacialidade do cinema. Os filmes abandonam os estúdios da Cinecittà (Cidade do Cinema) - uma construção do regime fascista - e saem às ruas de uma Roma destruída e devastada para filmar. O que acontece aqui é uma inversão:

Chcot Daeiou | domingo, 01 de Março de 2015 - 22:07

Onde não temos mais cenários que imitam a realidade, mas a realidade é transformada em cenário dos dramas. Daí Nova York em Sombras, de Cassavetes, todos os filmes feitos em Paris. No caso do Brasil, a descoberta das favelas e sertões como cenários privilegiados a época. Os cinemas modernos terão um outro forte ponto de incisão que será sobre a ideia e o corpo do ator. É muito importante que o ator sofra realmente e passe por aquilo que o personagem representa (nesse caso, um reforço da impressão de realidade) ou mantenha um distanciamento entregando sempre que possível que aquilo não é mais que apenas encenado, estão todos a salvos, morrer significar apenas tombar pelo chão e levantar após o corta do diretor.

Chcot Daeiou | domingo, 01 de Março de 2015 - 22:12

Outro fato importante será que esse ator seja preferencialmente anônimo ou desconhecido e até que não planeje carreira - como uma possibilidade da democracia e do qualquer um ator - exposição apenas pela aparência e epiderme e menos pela noção da construção do personagem ou profundidade psicológica. Sumariamente, descartavam a noção de vedete e a possibilidade que ator-personagem tornassem-se maiores que o filme-autor. Tornaram a cinefilia então mais baseada no autor do que no ator. Essa manobra ganhou escopo e peso e ainda hoje atribuímos um filme a uma marca (Scorsese, Spielberg, Tarantino, Von Trier...). No caso do Brasil, os autores costumam conciliar a função de produtores, sendo os principais responsáveis pelos aspectos estéticos e econômicos de seus filmes. Ainda no Brasil, o conceito de "autor" ganhará um forte substrato de compreensão junto a televisão, como os autores de novelas - no campo audiovisual. Tudo Vai Bem assina os cheques para todos os envolvidos na produção.

Chcot Daeiou | domingo, 01 de Março de 2015 - 22:21

Por fim, eu gostaria de trazer a tona a citação a Glauber para estimular o arco final do que significaria uma nova política de cinefiliação. Quando comecei falando sobre máquinas e técnicas, o importante nisso não é o mero elogio ao progresso racional, mas o reconhecimento das bases em que o cinema assenta-se e, ainda mais importante, pela constante luta pela democratização dos equipamentos e processos. Glauber, em sua aparição em Ventos do Leste de Godard, canta: "por ali é o cinema do Terceiro Mundo, um cinema perigoso, divino e maravilhoso, vítima da repressão e da opressão imperialista, cinema perigoso, divino e maravilhoso, que no caso brasileiro precisa formar 300 cineastas para fazer 600 filmes por ano".

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