Milos Forman e o Maio de 1968
Compartilhe
Se Daniel Cohn-Bendit foi a cara da classe estudantil na França de 1968, liderando a universidade de Sorbonne em uma paralisação que se ampliaria e ganharia a adesão da classe trabalhadora, parando completamente o país, não é outro lugar que não a edição de Cannes daquele ano que representaria o engajamento cinematográfico às causas dos jovens, que reivindicavam uma reforma estudantil e acabaram se tornando o lado francês de um ano simbólico no mundo inteiro. O Festival de Cannes daquele ano teria 23 filmes na competição pela Palma de Ouro, mas aquela competição nunca aconteceu, pois um grupo de cineastas (incluindo Godard, Louis Malle, Jacques Demy e tantos outros) impediu a abertura das cortinas para a exibição dos filmes, em apoio ao movimento que parava o país; o júri apoiou, e Cannes se silenciou, deixando aquela competição sem exibição ou resultado. Naquele grupo de filmes estava O Baile dos Bombeiros, de Milos Forman.
Por talvez uma fina ironia, Milos Forman faleceu um mês antes das comemorações de 50 anos de maio de 68, e seu filme deve ser um dos exemplares mais bem sucedidos daquela 'competição que não houve'. De origem tcheca, Forman viu florescer na sua terra também uma 'nouvelle vague', influenciada porém distinta da francesa. Com um viés muito mais onírico e surrealista do que o caráter naturalista da onda francesa, Forman deve ter sido ao lado de Vera Chytilová seu maior expoente. O cineasta já tinha 4 longas antes do lançamento do que fora selecionado para a Croisette, incluindo o emblemático Os Amores de uma Loira. O Baile dos Bombeiros é o primeiro longa colorido de Forman, mas mesmo jovem ele já encenava seus temas recorrentes: o desafio as instituições, a rebeldia como forma de protesto, a picardia como linguagem, o olhar desafiador para o futuro, e às convenções, o escárnio.
O filme acompanha o aniversário de 86 anos de uma instituição dentro de outra, o homem por trás do bombeiro. Com a clara crítica ao estabelecido aqui já bem expressa, Forman inauguraria a anarquia como forma de expressão de seus trabalhos, e aqui ela não estava disposta como uma ferramenta a ser utilizada por seus personagens, mas na disposição que ele faz de estratégias fílmicas ainda incomuns para a época, tais como a utilização de atores não-profissionais, a argamassa em clima documental e a alegoria com que pinta essa provável crítica ao socialismo e a corrupção moral como um todo.
Como mais uma vertente do deboche que ele imprimiu ao filme, o fogo está presente desde antes da abertura, e fica claro já nela o que acontece quando não se tem o controle. Que ele surja com um aspecto decorativo no início e volte no seu real caráter destrutivo ao final, é também isso uma ideia do descontrole com o qual Forman fortaleceria como base narrativa, que nesse filme em particular vai chegando aos poucos, primeiro em roubos constantes durante a tal festa até a preparação de um concurso de beleza nada usual, irrompemdo ao fim com a nova chegada do fogo quase como um insuspeito agregador em meio ao caos.
Imbuído do espírito que assolou o mundo em 68 e tendo sido testemunha ocular dos eventos que interromperam o festival francês daquele ano, Forman seria estão cooptado para a América no longa seguinte, apenas três anos depois dos eventos. Procura Insaciável é a resposta de Forman a tudo que aconteceu, sua espécie de homenagem, uma entrada nos EUA com o pé na porta e, independente disso tudo, um filme que sobrevive a qualquer movimento ou análise unitária. Acima de tudo é um filme que sobreviveu ao tempo e que faz tanto sentido hoje quanto há 47 anos atrás.
Uma jovem desaparecida, vários jovens desapareceram... onde estarão todos? O pai de uma delas prefere a hipnose ao mundo real que o oprime e do qual ele não consegue capturar sentido. Esse distanciamento que observamos no protagonista é compartilhado pelos outros "adultos" do longa, autômatos à espera de uma revolta cibernética que os tire das tarefas mecânicas diárias. Literalmente paralelo a isso, o filme monta um mosaico a respeito do interesse do jovem indivíduo em 1971; seria a arte a salvação do mundo? Música, poesia, dramaturgia, interação com o próximo e convivência pacífica são alguns dos acessos com a qual o filme adentra o universo da adolescência no início da década de 70. Filhos de uma sociedade que escolheu guerras, preconceito e escândalos políticos, a juventude só quer sua liberdade de ir e vir. E amar.
Em meio a um tempo onde pais e filhos não se reconhecem nem se espelham, o eterno conflito de gerações conflagraria muitas outras camadas, porque não só a arte passava por uma transição, mas o amor, o sexo e os costumes também. E depois de correr por uma hora atrás de sua filha, eis que nosso protagonista encontra um grupo de pais cujos filhos estão desaparecidos que, numa ânsia de tentar entender os rumos da juventude moderna, se submeterão a uma experiência que rende a clássica cena da aula sobre maconha, como fumar e suas consequências. É nesse ápice que Forman deixa claro de que lado está e o que apregoa: o futuro virá da beleza dos Cohn-Bendit espalhados ao nosso lado, que tem em si o olhar apurado em direção ao futuro.
Contando com a montagem exuberante de John Carter e os papéis centrais vivido com acertado misto de espanto e volúpia por Lynn Carlin e Buck Henry, Milos Forman chegava em um novo país com um futuro pela frente que se provaria extraordinário, criando uma das maiores, mais provocadoras filmografias de todos os tempos. E se Procura Insaciável iria influenciar tudo que viria a seguir, muitas sementes seriam plantadas naqueles meses de 68, que fortaleceriam o espírito contestador que o próprio já tinha anteriormente. Dá pra imaginar Forman olhando para o caos que se estabeleceu naquele tempo com o mesmo rosto que encerra o filme antes dos créditos: a convicção em suas escolhas e a consciência de tê-las feito.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário