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Artigos

As imagens fantasmas de Império dos Sonhos

 

 

Em A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), filme que marca o início da fase mais radical de David Lynch, o ponto de partida da trama se desenrola a partir do momento em que um casal recebe fitas anônimas com imagens do interior de sua casa. O pânico toma conta conforme mais fitas vão chegando, em imagens cada vez mais próximas do quarto deles. Tirando do contexto essa situação apavorante elaborada por Lynch, conseguimos notar com mais atenção o fascínio do diretor com a manipulação de imagens em vídeo. Quando os videocassetes começaram a se tornar artigo popular lá pelos anos 80/90, o grande público ganhara um poder exclusivo sobre as imagens que até então só estavam sob o poder de seus criadores. Antes disso, por exemplo, não era comum a paralisação de alguma cena durante a projeção do filme, ao menos que o próprio cineasta o fizesse intencionalmente, tal como Martin Scorsese em Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990).

Depois da popularização e do fácil acesso a fitas em videolocadoras ou mesmo em vendas diretas, qualquer um podia, a seu modo, “controlar” o fluxo do filme, ou até mesmo modificá-lo, remontá-lo ou editá-lo até a completa diluição de suas imagens em frames independentes um do outro. Lynch previu os resultados desse novo poder dado ao espectador e se adiantou em coligar isso ao seu cinema cada vez mais proposto em radicalismos narrativos e estéticos. Os vídeos eram uma forma de passar para frente uma ideia aos seus receptores, dar a eles o poder não somente de rever um filme querido, mas também de alterá-lo. Mas se essa empolgação começou tímida no plot de A Estrada Perdida, foi somente com o advento do cinema digital que seu conceito ganhou definitiva forma e tamanho.

Uma das maiores mudanças trazidas pelo cinema digital e a internet foi com relação ao fato de que não há mais (ou há bem pouco ultimamente) a reprodução mecânica das películas, e agora as imagens conseguem ser reduzidas a códigos binários que podem ser armazenados, reproduzidos e divulgados com muito mais facilidade, inclusive via internet. A apropriação pública do material original permite que qualquer pessoa possa congelar as imagens, quebrá-las, retirá-las do contexto inicial e utilizá-las da forma como bem entende, incluindo a possibilidade de atribuir um novo significado a elas, dando fim à antologia da tradicional imagem fotográfica. Surge daí o conceito de imagem-informação, sugerido pelo crítico Francisco Cannalonga no texto que pode ser lido aqui.

Mas se na rede o público tem a oportunidade de isolar o(s) frame(s) de um filme qualquer e dar a ele um novo sentido, em Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006) Lynch se adianta em ele próprio, ainda durante o desenrolar do filme, habilitar suas imagens como objetos autônomos e independentes uns dos outros – ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, formam um conjunto diegético, ainda que bem frágil. Maestro das sinfonias abstratas dos sonhos, ele sempre arquitetou e regeu um universo único no cinema, sabendo filmar com uma precisão assustadora o lado mais obscuro da mente humana.

Império dos Sonhos é a experiência (essa palavra é importante aqui) mais radical de David Lynch desde Eraserhead (idem, 1977), visto que se desprende de qualquer amarra narrativa a partir de certo ponto. O pouco que conseguimos reconhecer como lógico dentro desse mundo de imagens apavorantes é a história de uma atriz que participa da refilmagem de um filme polonês que nunca foi terminado, devido a uma aparente maldição. Esse fiapo de sinopse é o suficiente para que Lynch abra mão de todas suas estruturas narrativas e visuais para simplesmente reger um pesadelo esquizofrênico sem fim. Afinal, transitar em um terreno onírico permite total liberdade ao criador de se valer única e exclusivamente do impacto imagético de sua criação.

A questão é que mesmo enquanto parte do contexto do filme, os frames de Império dos Sonhos funcionam simultaneamente como espécies de imagens-informação. A falta de pleno comprometimento de uma cena para com a outra permite que cada imagem ou situação ganhe vida própria e independente, ao mesmo tempo em que também pode ser enxergada como parte do todo do filme. Mas visto ser difícil encontrar um fio condutor que dê liga a todas essas cenas, as imagens de Império dos Sonhos são como fantasmas, livres na órbita do universo lynchiano e, por conta disso, abertas a leituras e interpretações tanto dentro quanto fora do contexto. Claro que, diferente da ideia defendida por Cannalonga no texto supracitado, tais imagens não estão ressignificadas sob a perspectiva do público, mas exercem a função curiosa e dupla de trazerem dentro de si toda uma validade própria e independente das demais. Em suma, cada singular frame de Império dos Sonhos pode tanto valer como parte do conjunto do filme, como pode valer como um universo particular à parte dele, sem que para isso seja necessário extrai-la de sua projeção original.

No entanto, é preciso tomar cuidado e evitar de classificar Império dos Sonhos como uma sucessão pretensiosa de imagens aleatórias sem nenhum sentido. Não se trata de um novo Um Cão Andaluz (Um chienandalou, 1929) ou como Jean-Luc Godard tentou fazer recentemente em Adeus à Linguagem (Adieu au Langage, 2014), visto que há o cuidado meticuloso de Lynch em manter uma atmosfera homogênea capaz de englobar todas as diversas situações na conclusão clara de que estamos adentrando na cabeça de Nikki (Laura Dern), seja em seus sonhos, pesadelos, desejos, lembranças, memória, inconsciente ou subconsciente. Para Nikki, cada assombração que surge é algum tipo de reflexo de sua vida, mas nem sempre isso fica claro para o espectador, embora saibamos que se trata de algo obviamente relacionado a ela.

Ressurge então o paralelo do conceito de Império dos Sonhos com o poder do público de hoje com as imagens digitais. Lynch brinca com essa ideia ao congelar deliberadamente alguns frames de Império dos Sonhos durante a projeção, valorizando o impacto assustador da condição estática das imagens, como que evocando aquelas lembranças que sobram na memória apenas em quadros inanimados e que vez ou outra surgem repentinos e fantasmagóricos na mente. Muitas vezes nem conseguimos lembrar de onde essas memórias surgem exatamente, mas o choque imagético causado por elas é devastador. O exemplo mais claro do filme se dá quando o rosto de Laura Dern surge abruptamente colado na tela, deformado, esticado, apavorador.

Quando digitamos “Império dos Sonhos/Inland Empire” no Google Imagens é essa imagem que aparecerá mais vezes. Na rede surgindo como uma imagem-informação, livre para ser interpretada e/ou ressignificada diferentemente por cada internauta; no filme, um momento que pode estar relacionado ao pesadelo labiríntico de Nikki pode apenas surgir como um frame fantasma, ou uma aparição aleatória e catártica usada por Lynch para valorizar o poder da imagem apenas enquanto imagem, assim como ela vem sendo valorizada cada vez mais num mundo onde pode ser retirada de seu todo e passar a significar um universo todo à parte.

Comentários (11)

Fabiano Chinaski | terça-feira, 11 de Agosto de 2015 - 14:31

O Romero toca num ponto que concordo bastante: embora as imagens sejam parcialmente atomizadas no cinema de Lynch isto não significa que a organização do todo seja completamente diluída. Antes há uma reorganização da totalidade, mas não a partir de um critério de unidade. Lynch não é nonsense ou simples chapação.

Luiz F. Vila Nova | terça-feira, 11 de Agosto de 2015 - 17:05

O filme tem um senso lógico fragmentado durante a projeção, com cenas que se complementam e que se contrapõem também. De qualquer forma, acredito ter conseguido entender o núcleo da história, assim como as principais passagens da trama. Mais complexo do que Cidade dos Sonhos no que se refere ao que é sonho/realidade, se mostra como uma experiência áudio visual impactante que parece exorcizar os demônios interiores de seu criador. Belo texto, Romero.

Landerson DSP | terça-feira, 11 de Agosto de 2015 - 21:13

Se não for, não está muito longe disso.

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