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O horror no cinema mudo


Hoje, muito do cinema de horror vem da manipulação do som e de seus efeitos, a fim de provocar o suspense, trabalhar a tensão, sugerir uma ameaça. É difícil ver um filme do gênero que não use em algum momento o som como atalho para a catarse de alguma cena. Claro que no inicio do cinema, antes de haver tecnologia capaz de sincronizar a imagem e o som com exatidão e eficiência, o gênero tinha toda uma configuração e lógica diferentes das que estamos acostumados a ver e ouvir hoje. A fim de resgatar essas origens, a Obras-Primas do Cinema lança neste mês a coleção de DVDs Horror Mudo, que reúne em dois discos um total de quatro filmes de terror clássicos, que representam o nascimento e a evolução inicial pela qual o gênero foi se submetendo conforme o avanço das técnicas e tecnologias. 

Vale lembrar que a expressão “horror mudo” não significa ausência completa do som. Todos os filmes contavam com trilhas sonoras, muitas delas tocadas ao vivo nas salas de cinema durante as projeções, mas o foco desses sons era reforçar a dramaticidade de cada cena, nem sempre a favor do terror ou do suspense em si. Somente depois de anos que os recursos sonoros foram pensados como auxiliares na hora de provocar suspeitas, medos, sustos etc. Assim sendo, tais obras tinham na verdade uma composição de imagem muito mais poderosa e sugestiva que grande parte dos filmes de terror atuais. Jogos de luzes e sombras, truques de imagem, enquadramentos, ângulos, cenografia – tudo residia muito mais no visual, e por isso muitos deles até hoje são genuinamente aterrorizantes sem precisar soltar uma palavra ou nota musical sequer. 

O primeiro disco reúne dois filmes inspirados em clássicos da literatura que influenciam até hoje a ficção em livros, filmes e até música. O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1920) é uma versão menos popular do romance de Robert Louis Stevenson, mas possui uma das atmosferas mais sombrias do cinema clássico, e viria a ser novamente reciclado em outros filmes nas décadas seguintes. A história do médico que reprime seu lado “mau”, mas que eventualmente acaba dominado por ele, é um ícone da cultura pop que reverbera até hoje em personagens populares como o super-herói Hulk, e discute a questão do dilema entre o homem civilizado e seus instintos violentos. Conflitos de identidade, ocultações de personalidade e outras camadas de variações emocionais e psicológicas se refletem na construção visual composta pelo diretor John S. Robertson, numa mise-èn-scene toda trabalhada em dicotomias visuais. 

Ainda no primeiro disco, O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame, 1923) trabalhar o horror no âmbito social, tratando da rejeição que um homem cheio de deformidades físicas sofre em uma Paris conservadora e influenciada pelos medos da religião e do Estado. Quasímodo é um dos personagens mais importantes da literatura e no cinema tem uma caracterização tão horrenda que sua figura acaba evocando ao mesmo tempo o horror e a piedade, o medo e a empatia. Pioneiro, é um filme que aponta a hipocrisia da sociedade usa o gênero como forma de estimular a reflexão e expor os verdadeiros monstros que existem por trás dos mais belos rostos. 

Outro filme sobre deformidades físicas e ocultação de identidade é O Fantasma da Ópera (The Phantom of the Opera, 1925), também uma adaptação literária que abre o segundo disco da coleção. Sendo a obra original muito fundamentada na lógica musical de uma ópera literal, é interessante ver o uso da trilha aqui ser muito mais em favor do horror do que da contextualização daquela realidade. A pegada romanesca e o estudo de personagem oferece uma perspectiva mais dúbia sobre os personagens e o horror é empregado a favor dessa ambiguidade moral de cada um. No entanto, a pérola do disco e um dos lançamentos mais importante no home-vídeo brasileiro este ano é o sueco A Carruagem Fantasma (Körkalen, 1921), uma obra-prima seminal sobre uma lenda fantasmagórica evocada por três homens em uma véspera de Ano Novo. Muito à frente de seu tempo, o filme usa de truque de imagens e possui uma direção até hoje muito influente a muitos cineastas de Victor Sjöström. O gênio Ingmar Bergman, inclusive, foi muito influenciado por este filme e até mesmo o homenageou diretamente na abertura de outra obra-prima, Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957), filme estrelado pelo próprio Sjöström, e não à toa. 
Embora a arte da capa da coleção seja pouco inspirada e não faça jus ao conteúdo, no interior do box há os cards com as artes dos pôsteres originais de cada filme reproduzidas. Nos extras, uma maravilhosa entrevista com Ingmar Bergman falando sobre a importância de A Carruagem Fantasma em sua carreira, além de mais duas versões de O Médico e o Monstro em curtas do cinema mudo, uma deles dirigido pelo lendário Louis B. Mayer. Não deixem de conferir essa pérola do home-vídeo, já disponível no mercado. 

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