A Arte de Federico Fellini
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Federico Fellini foi um artista no sentido mais completo da palavra. Seu cinema foi, como todo o cinema é, um registro e retrato de seu tempo. Ao mesmo tempo, foi também um relato de suas impressões e lembranças sobre esse tempo, os lugares que passou, as pessoas que conheceu e as experiências que viveu. Como um grande artista, não se limitou a apenas registrar um mundo, mas também imprimiu em suas imagens a particular visão de um desloucado que nunca encontrou exatamente um lugar para si nesse meio todo. A realidade retratada em seus filmes é contaminada por lembranças confusas, sonhos absurdos e viagens espaço-temporais que acabam solvendo cada frame em uma particular fagulha de loucura, e resultam em obras-primas únicas, que só poderiam existir por meio dele e de mais ninguém.
Três de seus filmes estão sendo lançados em DVD no Brasil pela Versátil Home Vídeo na coleção A Arte de Federico Fellini, um digistack que ainda conta com o documentário Ciao, Federico! (idem, 1970) e quatro cards que reproduzem a arte dos pôsteres originais, além de muitos extras. Confira abaixo um pouco sobre cada um desses títulos.
Roma (1972)
Se em Amarcord (idem, 1973) o diretor retorna à sua cidade natal, no interior da Itália, e volta a enxergá-la através do filtro lúdico e nonsense de suas memórias de infância, em Roma é a vez da capital italiana ser revisitada nas gavetas de suas reminiscências adolescentes. Recém-chegado do interior e completamente perdido na cidade grande, o jovem Fellini enxergou uma Roma mergulhada em som e fúria: chocante, grandiosa, barulhenta, miscigenada, colorida, labiríntica e habitada pelas mais estranhas figuras. Para um rapaz ainda inexperiente e acostumado com a calmaria interiorana, aquele primeiro contato com Roma lhe despertou estranheza e uma bizarra atração, e são esses mesmos sentimentos que Fellini procura despertar no espectador com seu filme. Obviamente, essa Roma pintada por Fellini não existiu em momento algum, somente em suas confusas lembranças guardadas com tanto carinho no coração, mas com certeza foi um dos fundamentos para o cinema de contrastes e choques como o dele. Roma é a balbúrdia de Fellini, seu quadro nunca abstrato o suficiente para perder completamente o sentido, mas ao mesmo tempo confuso demais para provocar qualquer reconhecimento.
Satyricon (1969)
A corrupção de fatos é inerente ao cinema de Fellini, que em momento algum se propõe a remontar suas memórias na ordem certa, quanto mais os registros históricos que sequer presenciou. Como no samba do crioulo doido, ele reescreve a decadência do Império Romano de acordo com seu bel prazer e o resultado é um filme subversivo e talvez seu trabalho mais hermético e mal compreendido. Reunir em um picadeiro as mais diversas figuras em um erótico desfile de cores e show de luzes é seu desafio, cumprido de forma artesanal e com o senso de espetáculo necessário, mantendo-se fiel aos registros descontínuos e fragmentados do satirista romano Petrônio, cuja identidade exata nunca foi ao certo desvendada pelos historiadores. A desestrutura dos escritos originais, que desconstroem arquétipos literários heroicos, é um material dinamitado nas mãos do diretor, que se esbalda como nunca em possibilidades irrestritas. Curioso e estranho (como todo Fellini) ver como um diretor que começou lá nos fiéis retratos do neorrealismo italiano chegar até o ápice do abstracionismo e falta de compromisso com a realidade em Satyricon.
A Voz da Lua (1990)
Se antes Fellini contestava verdades, desafiava limites, ignorava o certo e abraçava a mentira, em A Voz da Lua, seu canto de cisne, ele parece finalmente ceder à idade e começar a questionar o porvir. Seu lirismo e onirismo são confrontados pela modernidade e pelo súbito e implícito pavor da finitude, e a condição efêmera e mutável da natureza o intriga e ao mesmo tempo o absorve. Roberto Benigni dessa vez servirá de condutor nessa nova jornada pelo absurdo e pelo alegórico, sendo guiado pela Lua, o único elemento em cena que situa o personagem e o espectador, como um norte em meio ao caos moderno. Sendo o satélite um objeto de veneração místico e onírico, tudo que está sob sua luz ganha um contorno também surreal, mas ao mesmo tempo menos efervescente do que em outros filmes de Fellini, como uma chama se apagando. A música, elemento-chave da obra, também vai perdendo a consistência e se fragmentando em barulhos aleatórios, a magia vai acabando e a conclusão do gênio é de que, a despeito do que nos aguarda após o nascer do Sol, vivemos num mundo onde não existem verdades concretas – tudo depende do filtro empregado pelo coração, capaz de verter qualquer realidade chata no mais louco sonho.
Bônus:
Não deixem de conferir também a coleção A Arte de Brian De Palma, que reúne a obra-prima Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981) e os cult Irmãs Diabólicas (Sisters, 1973) e O Fantasma do Paraíso (Phantomofthe Paradise, 1974) em uma edição limitada com 4 cards e mais de três horas de extras.
Vontade de comprar os dois. Gosto muito de "Roma" e queria rever o "Satyricon"; e gostaria de conhecer mais o cinema do senhor De Palma.
Que legal esse do Fellini. Faz tempo que não vejo um seu.