Em todas as religiões Deus é onisciente, onipotente, onipresente. Criador de tudo o que existe, conhecedor de todas as coisas, é infinito. Ele se comunica com os homens por meio de textos sagrados, de anjos, de santos e de profetas. Com sua sagrada vontade, dirige todas as formas de vida, os movimentos, as combinações, os destinos, o mundo, o universo. Em todos os tempos ele foi e é adorado. Porém, com tanto sofrimento sobre a Terra, também há quem o odeie. Amando ou odiando, todos tememos o que não entendemos.
Will Caster (Johnny Depp) é o cientista que junto à sua esposa, Evelyn (Rebecca Hall), dedica-se ao estudo do cérebro e ao desenvolvimento de inteligência artificial (IA). De forma tão independente quanto possível ambos construíram o projeto PINN, um supercomputador baseado em processadores quânticos, que servem de suporte físico a uma mente virtual. PINN é um protótipo, ainda incapaz de decisões autônomas e de emoções.
Bree (Kate Mara) é a estudante e ex-estagiária que assume a liderança de um grupo terrorista anti-tecnologia. Inspirados pelas críticas do neurocientista Max Waters (Paul Bettany) à valorização da tecnologia em detrimento dos valores humanos, o grupo deseja o fim das experiências com inteligência artificial.
Após uma palestra, Will é baleado e envenenado com material radioativo, ao mesmo tempo em que importantes laboratórios de pesquisa são atacados e cientistas são mortos. Mas, se os ataques destruíram boa parte dos estudos avançados sobre inteligência artificial, não impediram que a solução para o problema da construção de uma mente virtual autoconsciente viesse à tona.
Frente ao problema da inescrutabilidade da mente (a impossibilidade de sondar a subjetividade de uma mente a partir do ponto de vista dela mesma), cuja solução seria necessária à construção de uma IA autoconsciente, Thomas Casey (Xander Berkeley), morto nos ataques, adotara um atalho. Ao invés de insistir na busca pela solução de um problema que se mostra intransponível, ele apostou na duplicação de uma mente já existente. Em fase de testes, duplicou a mente de um macaco, “decodificando sinapses em tempo real”, ou seja, traduzindo em impulsos elétricos as comunicações entre neurotransmissores cerebrais.
Parte de Evelyn a iniciativa de aproveitar as informações deixadas por Casey para duplicar a mente do marido, que envenenado está à beira da morte. Para tanto, conta com a ajuda do amigo Max Waters e com os processadores quânticos retirados do sistema de hardware da PINN. Porém, ao decodificar o cérebro de Will e processar as informações o que surge é a mente de Will, seu espírito autônomo, ou o quê? “Qual a natureza da consciência? Ela existe? Se existe, onde reside?” Os questionamentos de Will Caster remetem a antigas reflexões sobre o conceito de identidade e de consciência, que derivam de outras questões sobre a relação entre corpo e mente.
O pensamento ocidental é herdeira do pensamento grego. Platão e Aristóteles entendiam a alma como princípio de vida e de movimento do corpo. Para Platão, a alma é o “piloto do navio”, ou seja, uma entidade que se instala numa outra, tomando-a como morada temporária; para Aristóteles, o corpo é órgão da alma, age e relaciona-se no mundo por atuação dela. A alma é dotada de funções específicas e autônomas, existentes em estado potencial e que se atualizam constantemente, desde que disponha de condições adequadas.
No século XVII, René Descartes publicou o seu “Meditações Metafísicas” (1641). Descartes, então dissocia corpo e mente, adotando a dúvida como princípio. Para ele, a alma, “pelo qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo”, pois “ela pode ser ou existir sem ele”. O raciocínio claro e distinto requer o exercício do pensamento e abole a interferência dos sentidos, estes sim dependentes do corpo. De formação cristã, Descartes acreditava que a alma une-se ao corpo pela glândula pineal, situada no cérebro. Mas, ele não foi o único a preocupar-se com tal problema, longe disso.
Baruch de Espinoza, em Ética, de 1677, critica as concepções de Platão, Aristóteles e Descartes. Para ele, não há relação hierárquica entre corpo e alma. O corpo não é comandado pela alma, ambos agem de forma integrada. Escreveu Espinoza: “O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido de extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa”. Em outras palavras, o corpo capta e guarda informações que a mente acessa e processa.
Conceitos de consciência e identidade, portanto, surgem como estados da relação entre corpo e alma/mente. O estado do ser que percebe estímulos internos e externos (calor, frio, sensações, emoções, etc.), processa-os associando códigos, símbolos e linguagens, numa forma estruturada de pensamento permeado por imaginação e fantasias, seguindo tendências e formatos essenciais que lhes são característicos.
Para David Hume, filósofo do século XVII, por exemplo, o ser humano tem o hábito de imaginar-se com uma identidade única, um eu, que se transforma com o passar do tempo, mas não muda essencialmente. Porém, para Hume, não há nada que demonstre tal unidade do eu, que nada mais é do que um feixe de percepções que se alternam. Nietzsche, no século XIX afirmou que o homem é uma configuração de forças em permanente alternância na busca da realização de toda sua potência. Porém, a mente é um órgão do corpo, não podendo ser dele desvinculada. A ideia de identidade, portanto, também é incerta e bastante frágil. E, para complicar ainda mais, os conceitos incertos de consciência e de identidade aplicados a uma IA ainda estariam associados a alguma forma de inconsciência.
Por sua vez, o princípio do processamento computacional é a oscilação de correntes elétricas (combinações de 0/desligado, 1/ligado, com potência e velocidades alteradas), ou seja, a energia que regula as funções cerebrais tem um paralelo na energia que faz funcionar os computadores. Porém, frente aos apontamentos de Platão, Aristóteles, Descartes, Espinoza, Hume e Nietzsche se tem um breve vislumbre da complexidade que envolve a inteligência artificial e a dificuldade de responder o que é este novo Will Caster.
Assim, mais uma vez Christopher Nolan participa da construção de uma obra que é confundida por muitos com mero entretenimento quando, na verdade, pretende fazer pensar, desta feita colocando em discussão uma realidade que bate à nossa porta. Os cientistas realmente sabem o que estão fazendo? O avanço da ciência e da tecnologia é ameaça ou solução? E nós, leigos, entendemos o que os cientistas fazem o suficiente para participarmos das decisões que envolvem o destino de toda a humanidade? Com quais questões a humanidade deve se preocupar? Quais as escolhas possíveis e necessárias e quais suas consequências?
Não há nada de muito especial no roteiro de Jack Paglen a não ser o fato de ter sido bem fundamentado e construído sobre argumentos bem contextualizados. Frente à crise ambiental, a humanidade, mais do que em qualquer outro tempo, se vê diante dos resultados de suas relações com o planeta. Se deseja sobreviver, precisa criar as condições que possibilitem a sobrevivência, reconciliando-se com o ecossistema.
Por outro lado, o conhecimento acumulado de todas as épocas, fonte do conhecimento necessário à criação de tais condições, não pode ser processado por mentes humanas, dado seu volume e complexidade. Supercomputadores e inteligência artificial despontam como solução. Diz Will Caster: “O intelecto combinado dos maiores neurocientistas, engenheiros, matemáticos e hackers deste auditório estão muito longe em comparação com a mais básica IA.”
Mas se inteligência artificial é solução, como controlá-la? Como o homem mortal e dono de uma mente limitada pode compreender as razões de uma mente autônoma e ilimitada? Como compreender as motivações e controlar as intenções de uma IA se ela é superior ao próprio homem? Ela realmente pode ser usada em benefício da humanidade? Como ela pode ser usada e o quanto a humanidade precisa transcender para usá-la? São questões comuns em filmes de ficção científica. O que não é comum é que o distanciamento entre o tempo da ficção científica e o tempo presente seja praticamente nulo. Transcendence ao falar sobre uma possibilidade futura, a busca pela tecnologia que permita construir uma IA autoconsciente, fala do tempo presente.
Os terroristas liderados por Bree temem que as máquinas submetam os homens, tirando-lhe a liberdade, as escolhas, a humanidade. Porém, os seres humanos, com sua liberdade de escolha, matam-se uns aos outros; constroem e mantém categorias de pensamento que se orientam pela busca por poder destrutivo, por controle e por domínio que levam a agressões contra o meio ambiente, a guerras, à morte. A humanidade livre, com sua atual forma de pensar e agir, está em um beco sem saída.
Evelyn, em sua fé inocente, acredita que “máquinas inteligentes em breve nos permitirão alcançar nossos desafios mais difíceis. Não apenas para curar doenças, mas para acabar com a pobreza e a fome, para curar o planeta e construir um futuro melhor para todos nós.” E Will completa: “Quando funcionar, a máquina em questão irá rapidamente ultrapassar os limites da biologia. Num curto espaço de tempo será maior do que a inteligência coletiva de cada pessoa nascida na história do mundo.” O que ambos não contavam é que a primeira destas máquinas seria suporte para a mente do Dr. Will Caster. E não aparentam se dar conta (com nossos cientistas reais, geralmente parecem não se dar conta) de que novas máquinas trazem consigo novos diletas éticos para os quais o grande público não está preparado para lidar.
Enquanto a mente de Will, a princípio baseada nos processadores da PINN e depois em rede mundial, transcende, como inteligência artificial autoconsciente evoluída, os homens continuam presos ao modo de pensar estabelecido. Enquanto Will torna-se um Deus onipotente, onisciente, onipresente, e permanece em evolução, seus opositores continuam a fazer uso das mesmas categorias de pensamento típicas do mundo globalizado bélico do século XXI. Para Max: “Essa coisa é como qualquer outra inteligência. Precisa crescer, evoluir. Agora está procurando um lugar que acredita ser seguro contra ameaças externas. Algum lugar em que seu enorme apetite de poder seja saciado. Mas ele vai querer mais do que isso. Depois de um tempo, sobreviver não será suficiente. Ele expandirá e evoluirá e talvez até influencie o mundo inteiro”. Para o cientista Joseph Tagger (Morgan Freeman) e para Buchanan (Cillian Murphy), agente do FBI, Will está "montando um exército".
Max parte de uma generalização. Entende que toda IA vá procurar crescer da mesma forma, expandindo-se e procurando saciar sua sede de poder. Assim indicam muitas teorias filosóficas e científicas. Mas, a IA não é autônoma, capaz de decisões morais e sujeita a escolhas imprevisíveis, como todos nós? Max, o FBI, os terroristas, Evelyn à certa altura, e mesmo o público quando embarca no mesmo julgamento feito por estes personagens, apenas demonstram sua forma viciada e um tanto paranoica de pensar. É um artifício proposital do roteiro destinado a levar o público a questionar-se.
Ao atacar a IA, terroristas, cientistas e FBI atiram contra seres humanos. E assim procedem sob a justificativa de salvar a humanidade. Mas, qual o conceito de humanidade? O que lhes dá o direito de proclamar sua interpretação pessoal do conceito de humanidade sobre todas as outras existentes e que possam vir a existir? Sua forma de salvar a humanidade é provocando mortes de inocentes. Por fim “ele não matou ninguém", diz o militar a serviço do FBI, referindo-se à IA.
Há muitas formas de exercer poder e muitos objetivos são possíveis a quem o exerce. A “sede de poder” de Will Caster não parece ser a de destruição e de controle pelo mero prazer do controle, mas sim de restauração, de melhoria do mundo e das condições de vida. É uma opção moral. E se o Deus das religiões, que permite a existência de tanto sofrimento na Terra é cultuado e temido, porque não seria amado muito mais um Deus que bane todo sofrimento, curando doenças e o ecossistema? Talvez continuasse sempre temido, pois insondável e incompreensível. Porém, não há indícios de que aqueles que se conectaram à IA o fizeram contra sua própria vontade. “Melhoradas, modificadas e conectadas, permanecem autônomas, mas também podem agir em sincronia como parte de uma mente coletiva” (Will Caster). E o que é essa “mente coletiva”?
E neste ponto, Transcendence se torna poético e utópico. “O intelecto combinado dos neurocientistas, engenheiros, matemáticos e as pessoas têm medo do que não entendem. Os sonhos podem ser alterados... Podemos transcendê-los. Um intelecto recombinado pode reconstruir. Tão puro, tão simples.” Não é apenas de transformar homens em máquinas que Will fala, mas de superar as limitações do próprio pensamento, superar-se de todas as formas, inclusive superando as incompreensões que separam os homens, e ir além, em busca de formas de vida mais saudáveis, harmônicas e felizes.
Para mentes humanas, a solução para os problemas da humanidade não é simples, ou pelo menos não é fácil o caminho e o caminhar criticamente para chegar ao estado de simplicidade não alienada. Max Waters é o personagem que simboliza o mais comum em nós, o duvidar de milagres e o se agarrar a certezas racionais na esperança de ter encontrado um porto seguro. Afinal, tememos o que não compreendemos.
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