A pessoas possuem a necessidade de um objetivo na vida, um fim, uma explicação para tudo isso que existe. Daí o porquê de existir, desde o primeiro grupo civilizado, a religião. As crenças religiosas servem para explicar aquilo que, à época, não seria possível de uma explicação racional. As primeiras religiões possuíam como divindades figuras ligadas à natureza, especialmente sobre fenômenos não explicáveis no contexto (Exemplo: deus do Sol, deus do trovão etc.). Na medida em que a ciência se desenvolvia, foram sendo dados motivos racionais para esses fatos, e a religião entrou em crise, sendo dada como morta por Nietzche, vista como ópio por Marx e como delírio por Dawkins. Ocorre que ainda existem coisas que não existe alguma explicação racional. Por isso, a religião também servia como base para a arte. Alguns dos maiores artistas da humanidade, como Bach, Alighieri, Da Vinci, Cervantes, Michelangelo, Mozart, entre outros, tinham na religião a base para o seu trabalho. Dessa forma, a religião sobrevive. “Stalker”, de Andrei Tarkovsky, aborda como a fé age dentro das pessoas.
O argumento do filme é o mistério sobre uma região, conhecida como Zona, onde um estranho fenômeno ocorreu e, desde então, o local foi isolado pelo governo. Isso causou uma série de mitos sobre a área, que supostamente existiria um local, chamado Quarto (ou Sala), que poderia realizar os desejos de quem lá entrasse.
Para guiar as pessoas ilegalmente até esse Quarto, existem os stalkers. Aqui, Tarkovsky pode associar os stalkers aos líderes religiosos e gurus ou até mesmo à Igreja. O filme foi feito na União Soviética dos anos 1970, quando os ideais soviéticos revolucionários de 1917 já tinham sido duramente questionados. A Igreja Ortodoxa, banida na Revolução, teve novamente autorização do Estado para voltar a atuar em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. A razão disso? Os soldados do Exército Vermelho precisavam de uma motivação para lutar. E a luta de classes já não era mais suficiente. Era preciso algo a mais.
O filme conquista logo de cara com a sua fotografia, por Alexander Knyazhinsky. Cada frame é tão belo que o espectador pode pausar o filme, em qualquer momento, e simplesmente contemplar a imagem. Cada sujeira ou objeto na casa parece ter sido especialmente colocada para tornar aquele momento mais rico. A sua profundidade, a posição dos personagens no cenário, o foco, o modo como a câmera passeia pelo cenário, lentamente, aproveitando como detalhe seu. E o silêncio, pontuado por sons habituais, como o da água da torneira, chegam a soar bem em todo aquele conjunto. São duas horas e quarenta minutos muito bem aproveitados.
O filme começa em preto-e-branco, em alguns momentos em um tom saturado, lembrando o Expressionismo Alemão, em outros em um preto-e-branco mais clássico. Os personagens são apresentados dentro daquele ambiente pesado e sufocante, de cabeça baixa, como se estivessem carregando um peso enorme nas costas.
O stalker é contratado por dois homens, apresentados como Escritor e Professor, para levá-los ao Quarto. Depois de enfrentar a proteção estatal, eles chegam na Zona. Então, o filme se torna colorido. E as semelhanças com “O Mágico de Oz” se tornam mais evidentes. No filme de Victor Fleeming, inspirando no livro de L. Frank Baum, seres rumam em direção ao desconhecido em busca de alguma razão na sua vida. Em dado momento da história, o filme se torna em cores, representando o início da jornada. Mas, diferente da obra de 1939, o colorido aqui possui tons acinzentados e saturados, além do ambiente ser repleto de ruínas, dando um tom de pessimismo para a viagem, mesmo com os viajantes tentando convencer a si mesmos que aquilo ia terminar bem.
Um dos viajantes é descrito como o Professor. No bar, ele se apresenta como um físico, um cientista. Logo, deveria possuir certa aversão às superstições acerca da Zona. Porém, ele mesmo afirma que, apesar de todos os conhecimentos científicos acerca das leis que regem o mundo, falta alguma coisa, e, por isso, acaba por abandonar eu ceticismo habitual em busca do Quarto para ter essa suposta epifania (“Enquanto eu escavo em busca da verdade, acontece tanta coisa com essa verdade que em vez de descobri-la, desenterro um monte de...desculpe...prefiro não dizer”).
Já o outro é o Escritor, um artista. Ele possui uma visão diferente sobre esse mistério todo. Para ele, isso pode servir de inspiração, já que o tédio da sua rotina consumiu sua criatividade. Essa pode ser vista até mesmo como uma visão pessoal do cineasta. Já que a vida e o mundo são uma suprema ilusão, e ninguém, nem a ciência e a religião pode explicar o que significa isso tudo e a verdade é algo inalcançável, que ao menos isso sirva de inspiração para a arte, para a beleza.
O final, assim como em “O Mágico de Oz”, possui uma certa dose de anti-clímax. Enfim, eles chegam ao Quarto. O stalker não entra. Não tem coragem. E os outros dois também não. Após passarem por tudo isso. Ninguém quer cruzar a linha. Assim como no musical de Fleeming, ninguém conseguiu aquilo que realmente buscava na jornada.
Nesse momento, Tarkovsky sabiamente não mostra como é o Quarto. Apenas mostra a sua entrada, deixando-a fora do enquadramento de sua câmera. O Professor, representando a ciência e o pensamento cético, quer destruir o Quarto, alegando que todo o conjunto de crenças acerca dele é nocivo à sociedade, para o desespero do stalker que, mesmo nunca adentrando no Quarto, o defende com a sua vida.
Assim funcionam as crenças religiosas. Tarkovsky, de origem cristã ortodoxa, não deve ter criado esse filme como um panfleto anti-religião ou como um louvor à sua fé. Mas como uma demonstração sobre como funciona a espiritualidade e a fé em suas modalidades no mundo. Seja o espectador espiritual ou não, acreditando ou não que o mundo seria um lugar melhor sem os religiosos, o fato é que a religião é o assunto mais importante da história da humanidade, servindo como contraponto para as ideias científicas do Professor ou como fonte de inspiração para a arte do Escritor.
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