O fato do ser humano ser um animal sociável trouxe um certo problema: transformou-o em um bicho carente. As pessoas não conseguem se sentir completas com a sua própria presença, buscando a felicidade dentro de si e acabam por buscar nos outros aquilo que pensam faltar nas suas vidas. E essa procura se manifesta de diversas formas: procurando nos amigos, nos interesses românticos, na família, nas pessoas que são admiradas, e, na mais recente e triste forma de satisfazer esse anseio, nas redes sociais. Ocorre que essa busca, em regra, acaba por ser infrutífera, até porque aqueles que são alvos dessa busca geralmente também procuram por algo que os complete. Mas, mesmo sabendo disso, as pessoas acabam por continuar nessa jornada, criando um ciclo vicioso eterno de carências. Esse estranho fenômeno é abordado com maestria no filme “Le Notti Di Cabiria”, de Federico Fellini.
Nessa obra, uma prostituta conhecida como Cabíria (Giulietta Masina) vive uma eterna busca por alguém que a tire dessa vida. A cada vez que ela encontra alguém que julga ser o seu príncipe encantado, acaba por se decepcionar. Porém, demonstrando uma teimosia que seria admirável se não fosse por um motivo tão tóxico, ela insiste em buscar pelo amor da sua vida.
A cena de abertura já demonstra tudo isso, após ser ludibriada por mais um homem, ela é atirada no rio. Enquanto grita desesperada por socorro, um homem a tira da água e faz uma massagem para acordá-la. É bem curioso notar que, no momento em que ela, estando desacordada, recebe a massagem na barriga, a impressão que o espectador tem, através da câmera de Fellini e dos movimentos do ator, é que o homem está tendo relações sexuais com a pobre coitada desmaiada. É a vida de Cabíria. Ela grita por socorro. Um homem travestido de herói aparece e, sem que ela perceba, acaba por se aproveitar dela.
Mas, apesar de toda essa carência, ela faz questão de afirmar que está bem, chegando mesmo a dizer para aquela que aparenta ser sua única amiga que esta precisa dela (“De onde tirou essa ideia que somo amigas? Vá embora! E não peça mais meu termômetro emprestado”) e afirma possuir regras de conduta moral bem claras (“Não sou dedo-duro!”). Porém, quando sozinha, ela tem um estalo de realidade e reconhece sua tolice. Mas isso acaba por incentivar essa procura por alguém que lhe complete. E mesmo sendo prostituta, ofício onde os clientes não estão com muita vontade de se apegar a quem presta os serviços, a protagonista acredita romanticamente que através dele irá conseguir o seu objetivo. E esse romantismo é demonstrado em um momento em que Cabíria dança na rua, enquanto as outras garotas estão atendendo os clientes nos carros.
Ao longo do filme, a solidão é abordada de diferentes maneiras. Quando as prostitutas estão na praça com alguns rapazes elas acabam por sair no tapa por causa deles, que incentivam a briga. Quando Cabíria consegue sair com um homem em um belo carro conversível, ela faz questão de se exibir para as suas colegas e, chegando no restaurante, ela frisa para o funcionário que está bem acompanhada naquele lugar (“Ele me mandou entrar.”). Aqui existe não somente uma necessidade de auto-afirmação, mas que esta se fez através da presença de outrem, ainda que este seja um sujeito que é capaz de revidar um tapa em uma mulher, fato que Cabíria finge desconhecer, quando dá as costas ao casal. E esse indivíduo, chamado Alberto, a leva para a sua casa repleta de animais como aves e cães (os melhores companheiros para quem quer apenas uma companhia mais simples, sem as complicações do ser humano). Ao fim, fica nítido que esse homem é ainda mais solitário que a prostituta, quando a sua esposa volta e ele rapidamente se reconcilia. Pobre Cabíria. Ela está sempre na sombra, como na bela cena em que eles chegam na casa de Alberto e ela fica nas sombras na sala, até que ele a chama pelo nome e ela sai para o ambiente mais iluminado.
Outros modos de preencher o vazio da vida são apresentados ao longo do filme, como na cena da peregrinação, onde os fiéis, desesperados, imploram para que a Virgem Maria atenda as suas súplicas. A própria Cabíria estava lá, com o olhar fixo na santa, querendo ver alguma saída para a sua vida. Eis que surge uma. Um jovem se interessa por ela e esse sentimento é recíproco! Maravilha! Fellini usa aproximadamente um terço do filme para mostrar o desenvolvimento dessa relação em todas as suas fases, de maneira belíssima: como eles se conheceram, os primeiros encontros, as revelações de Cabíria. Tudo aponta que finalmente a vida dela está dando certo. Ela estava se sentindo da mesma forma quando foi hipnotizada. Leve, solta, feliz, livre dos fardos que a vida lhe impôs. Mas no fim, como no começo do caso do início do filme, tudo acaba com a coitada sendo feita de idiota por mais um malandro. E o ciclo recomeça, com uma belíssima cena final, onde um sorriso e uma lágrima aparecem no rosto de infeliz Cabíria, vítima-algoz de um padrão torto de felicidade.
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