O site “Taste of Cinema” listou, em um artigo, 10 filmes que bebem do filósofo Arthur Schopenhauer como inspiração para seus temas, lista essa que é encabeçada por “Histórias que Contamos – Minha Família”, um documentário dirigio por Sarah Polley sobre a vida da sua família, em especial sobre os seus pais Diane e Michael. O filme é feito dos relatos dos membros da família e de seus amigos, sendo a entrevistadora a própria Sarah, que também dirige as cenas em flashbacks criadas por atores.
Eu vou tentar aqui criar paralelos do filme com temas abordados na obra “Dores do Mundo” (nome bem sugestivo), levando em conta alguns temas constantes no seu índice dos tópicos que Schopenhauer abordou nessa obra: a moral, a morte, o amor e a arte, não necessariamente nessa ordem. Talvez, surjam alguns spoilers mais adiante (sim, documentários possuem spoliers), especialmente para quem não conhece a vida de Sarah Polley e da sua família.
Em resumo, Diane Elizabeth é uma atriz que realmente ama aquilo que faz. Depois de um primeiro casamento frustrado, ela se apaixona por Michael, um colega de profissão depois de vê-lo atuar em uma peça. A partir daquele momento, ela cria nele uma projeção daquilo que esperava em alguém para completar sua existência. Ou seja, ela não se apaixonou por Michael, e sim por aquele em que ela esperava que ele fosse. Se pararmos para pensar, esse pensamento, apesar de quem o tiver querer rotulá-lo como “amor”, na verdade é um bocado egocêntrico, já que é completamente desprovido de empatia. Sobre essa construção de um ideal em outra pessoa baseada no próprio ego, Schopenhauer escreve assim no tópico denominado “O Amor”:
“O egoísmo tem em cada homem raízes tão fundas que os motivos egoístas são os únicos com que se pode contar com segurança para excitar a atividade de um ser individual. [...] Para atingir o seu fim, é portanto necessário que a natureza engane o indivíduo com alguma ilusão, em virtude da qual ele veja a própria felicidade no que não é, realmente, senão a bem da espécie; o indivíduo torna-se assim o escravo inconsciente da natureza, no momento em que julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura quimera, logo desfeita, paira-lhe diante dos olhos e faz com que proceda.”
Diane se casa com Michael, idealizando uma vida com o ator que ela não teve no seu casamento anterior, muito isso por conta do fato deles serem atores. Porém, Michael passa a não poder sustentar bem a sua família, tendo que ter um emprego ordinário em uma empresa financeira. Isso frustra Diane profundamente porque a vida na qual ela sonhou acaba por se tornar só um sonho mesmo, cada vez mais distante. Contrariando Fernando Pessoa, ela (e a maioria de nós, de certa forma), traçou um plano para sua vida, vendo qualquer desvio dessa precisa rota como uma anomalia. Ou seja, Diane quer ter o controle absoluto da sua vida, não aceitando o imprevisível, buscando ter um lugar fixo ao Sol e mantendo essa ideia, mesmo com suas sucessivas frustrações. A visão do nosso adorável filósofo sobre isso:
“Não há nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes roedores que devastam tudo quanto é grande e ousado... Nada se toma a sério na vida humana; o pó não vale esse trabalho.”
Diane, tempo depois, dá a luz à sua filha caçula, Sarah. Porém, é diagnosticada com câncer (que é, ironicamente, uma formação descontrolada de células e tecidos, contrariando o previsto no organismo humano) e morre quando Sarah ainda é criança. Devido à morte da mãe, Sarah se apega demasiadamente ao pai, um sentimento é que é recíproco. Entretando, a medida que a menia cresce, também aparecem comentários duvidando da paternidade biológica de Michael, sugerindo que Sarah fosse fruto de um relacionamento extraconjugal de Diane.
Depois de adulta, Sarah vai apurar o fato, descobrindo que é filha biológica de Harry, que conheceu Diane em uma das suas pelas de teatro. Então, ela, depois de muito refletir e sofrer, terá que contar essa notícia para Michael. Em um momento emocionante do documentário, Michael descreve o momento em que Sarah lhe contou tudo, e de como sentiu o mundo desabando sobre si.
Porém, o que é dito depois é de chorar. Michael conta não sentir raiva de Diane ou de Harry porque, se não fosse pelo caso que tiveram, Sarah não existiria. Esse pensamento pode parecer risível em um primeiro momento, coisa de “corno manso”. Porém, por mais difícil que possa parecer, vamos pensar de forma utilitarista: Michael terá algum benefício, em sua vingaça, se Harry tiver uma morte agonizante ou lenta ou se Diane estiver queimando no Inferno? Não. Os próprios filhos, apesar do choque inicial de pensar na mãe tendo um amante, depois aceitaram esse fato, tendo na felicidade que a mãe encontrou em Harry (e que nunca encontrou em Michael ou no primeiro marido) como um alívio. O pensamento de Michael lembra o de dum velho sábio, que não vem da Alemanha de Schopenhauer,mas da Terra-Média: “Assim como todos que testemunham tempos sombrios como este, mas não cabe a eles decidir, o que nos cabe é decidir o que fazer com o tempo que nos é dado”. Ou, nas palavras do próprio Michael:
“São questões terríveis, mas temos que arranjar uma maneira de tornar isso divertido. Sou um homem muito afortunado, e um dos momentos mais gratificantes da minha vida deve-se ao fato de Harry Gulkin ter amado Diane. A Sarah só é o que é devido àquela noite de amor entre Diane e Harry. Se eu fosse o pai biológico dela, Sarah seria outra pessoa”
Ninguém pede para nascer. Ninguém pede para viver. Niguém escolhe a família em que viverá, o pais e os irmãos que terá ou até mesmo o seu nome. Ninguém escolheo país em que nascerá, o contrato social que será obrigado a cumprir mesmo sem nunca ter assinado contrato social algum, ou o grupo étnico em que viverá. Ninguém escolhe por quem se apaixona ou odeia. E, na maioria das vezes, não se escolhe também como e quando irá morrer. Olhando as coisas por esse ângulo, com tantas imposições e tão pouca liberdade, a vida pode não parecer tão boa assim. Ou, nas palavras de uma pessoa que conheço que é admiradora das ideias de Schopenhauer e que o descobriu em um momento pessimista da vida, “tudo era essencialmente dor e sofrimento com pequenas pitadas de alegrias”.
Ocorre que essa mesma pessoa viu que se prender dessa forma à esses pensamentos a deixou inerte, assim como Michael esteve nos primeiro momentos ao descobrir que Sarah não era sua filha biológica. Então ela passou a seguir o que Michael fez a partir daquele momento, que descrevi no parágrafo acima. Para finalizar esse humilde e limitado texto, deixo uma última citação de Arthur Schopenhauer, que resume tudo o que foi dito até aqui:
“Cada indivíduo, cada rosto humano e cada existência humana são um sonho, um sonho efêmero do espírito infinito da natureza, da vontade de viver persistente e teimosa, são uma imagem fugitiva que desenha na página infinita do espaço e do tempo, que deixa subsistir alguns instantes de uma rapidez vertiginosa, e que logo apaga para dar lugar a outras. Contudo, e é esse o lado da vida que faz pensar e refletir, urge que a vontade de viver, violenta e impetuosa”
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