Em meio a muitos sucessos e uma Nova Hollywood a todo vapor, em 1973 chegava aos cinemas uma adaptação de uma história real cujas credenciais certamente não permitiriam um fracasso. Sydney Lumet, diretor já consagrado por Doze Homens e Uma Sentença (1957) e a jovem e ascendente estrela Al Pacino, recém-saído do grande sucesso O Poderoso Chefão (1972), uniram forças para reconstruir a história do famoso policial Frank Serpico, que havia testemunhado recentemente contra a própria polícia. O resultado obviamente foi um sucesso: indicação ao oscar para o roteirista Waldo Salt que adaptou o livro de Peter Maas, e também para Al Pacino, cuja carreira alçava níveis ainda maiores.
Na primeira sequência do filme somos introduzidos à um homem ofegante e baleado no rosto sendo levado à um hospital. As ligações e a comoção revelam aquela figura barbuda e cabeluda como um oficial da polícia, Frank Serpico. Com a tragédia já anunciada, somos então transportados ao início de tudo, antes daquele rapaz se tornar a figura tão polêmica e malquista pelos próprios companheiros que se tornou.
Não se pode confiar num policial que não aceita suborno
A obra em questão nos apresenta à transformação de um jovem idealista e inocente em um amargo desiludido devido a própria impotência perante a algo que considera a escárnia da sociedade: a corrupção. Frank Serpico é um recém-formado policial de origem humilde. Logo de início se mostra como a representação perfeita da insatisfação com o meio em que vive. Além de buscar (e preferir) interação com pessoas de diferentes profissões, cultiva um visual pouco comum ao de um policial ordinário, e até mesmo a decoração de sua casa é um tanto alternativa. Toda a polêmica causada em seu trabalho só ganha mais força quando é descoberto que ele não aceita propinas, diferentemente de todos outros: está iniciada a batalha que o protagonista travará durante toda a exibição do longa.
A corrupção é desmascarada como uma doença que atinge todo o sistema. Os oficiais de menor escalão são de certa forma forçados a condizerem com a situação, caso contrário deixariam não só de complementar sua baixa renda como infrigiriam à uma espécie de código moral, além de, é claro, arriscarem seus pescoços. Os médios e maiores policiais, além de condizentes, são acusados de serem os iniciadores de tal prática. E a exemplo de qualquer outra manifestação contra uma maioria estável, a não-aceitação de propina por parte de Serpico sofre forte represália, no que pode ser resumido à um ato de preconceito. A maioria é tão grande que chegamos inclusive a desconfiar da integridade moral dos verdadeiros amigos do protagonista. E nada mais brilhante para representar tal situação como a metáfora do rei e dos súditos envenenados introduzida em algum momento.
Com tudo isso, a degradação mental do personagem principal se torna crescente chegando a atingir níveis em que sua personalidade se torna autodestrutiva. Além de se arriscar conscientemente com companheiros que não se esforçam muito para manter sua segurança, Serpico vai perdendo aos poucos sua namorada Laurie, cujo grande amor por ele vai definhando na mesma proporção em que seu medo e sua desconfiança aumentam.
Contudo, deve-se ponderar que nada disso seria possível senão com a colaboração de um inspiradíssmo Al Pacino. Ao assistir a esse filme, me parece que o início da carreira desse renomado ator foi definitivamente sua melhor fase. Sinceramente, não consigo pensar em nenhum outro que conseguisse interpretar a transformação de um inocente inofensivo a um ameaçador paranóico com tanta conveniência e ainda por duas vezes seguidas. Nesse filme, a excelente atuação da atriz Barbara Eda-Young somente impediu que ela não fosse esmagada por Pacino, assim cmo os outros coadjuvantes. E isso confirma que a Nova Hollywood não só revelara grandes talentos atrás das câmeras, mas também à frente delas.
Depois de Serpico ser transferido de unidade inúmeras vezes devido à sua insatisfação, somos finalmente conectados àquela tragédia anunciada no início em uma cena realmente tensa. Quando seus compnaheiros resolvem não ajudá-lo, o protagonista é baleado e levado a um hospital. Seu breve choro no leito do hospital nos traz uma comoção, um sentimento amargo de derrota. Mais uma demonstração do grande alcance cênico do ator Al Pacino. E finalmente, Frank Serpico se recupera e depõe contra a corrupção em um dos escândalos mais populares da história da polícia americana. Afinal, ele realmente fez algo.
Em perspectiva, pode-se identificar Serpico como um filme típico daquela época sem grandes dificuldades. Como dizem, um filme é sempre reflexo de seu tempo: as ruas cinzentas e decadentes de Nova York e o sentimento de insatisfação e inquietude de seu protagonista sintetizam o significado de toda aquela nova onda de filmes que vinham sendo e seriam realizados naquele tempo. Somente um filme daquela época seria capaz de expor uma fratura daquela magnitude em uma das instituições de mais prestígio do país com tanta liberdade, sobretudo por se tratar de um acontecimento real. Sydney Lumet apenas reforçava o coro dos tantos jovens cineastas da época, que através da arte refletiam toda a desilusão com a realidade, causada principalmente pela Guerra do Vietnã, e o questionamento do falso moralismo e da aceitação não arbitrária de imposições socioculturais pré-determinadas que imperou durante tanto tempo. Com tudo isso para explorar, não é à toa que a época em questão é configurada como uma das mais criativas da história do cinema.
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