Agora, é a vez de John Ford, o mestre dos faroestes e das fábulas americanizadas, despedir-se do gênero que o consagrou. Desta vez, sua obra tem um tom diferente, aborda questões mais profundas e pronuncia o fim de uma era, pelo menos para ele próprio. Claro, depois disso, chegaram as telonas excelentes faroestes que abordavam questões similares de caras como Sergio Leone, Clint Eastwood e Sam Peckinpah. Vale lembrar: todos influenciados por Ford.
Muito além de apenas abordar questões profundas, O Homem que Matou o Facínora, de 1962, é divertido e interessante como os outros. Tem ação, comédia e mistério. ''Quem matou?'' é a pergunta que o espectador se faz do começo ao fim do filme. Além disso, temos duas das maiores estrelas, já em meia-idade, mas em excelente forma: Jim Stewart e o velho parceiro do diretor, John Wayne.
A história: um importante político (Stewart) chega de trem a uma pequena cidade com sua bela esposa (Vera Miles). Motivo? O enterro de um velho amigo, Tom Doniphon (Wayne). Além dos dois, existem apenas duas pessoas no funeral. Aquele homem já estava esquecido e morrera pobre. Depois, alguns repórteres do jornal local desejam entrevistar o senador, e exigem uma explicação para sua presença naquela pequena cidade. É então que o personagem de Stewart começa a contar sua história, sobre como chegou àquela cidade há anos e como conhecera aquele que agora é um defunto.
''Tudo mudou por aqui'' ou ''vocês são jovens'' são algumas das passagens utilizadas para decretar, de uma vez por todas, que a época selvagem do velho-oeste, dos homens com leis próprias, acabou. A chegada da ferrovia em si já é a mais icônica representação do fim daquela era.
Ransom Stoddard, um recém formado em direito, viaja ao oeste, muito tempo atrás, buscando oportunidades. Não fazia a menor idéia do que iria encontrar. Após ser atacado pelo maior bandido local e ter seus livros rasgados, é acolhido pela cidade local. Furioso, deseja agora prender... sim, prender aquele bandido. Doniphon, um durão defensor do local, típico cowboy do oeste, o único mais rápido que o bandido Liberty Valance, prontamente trata de frustrar Stoddard dizendo que ali, naquela terra selvagem, as ''leis dos livros'' não tem valor algum, e a única lei que tem valor é a da pistola. Uma vez que o recém-chegado se recusa a empunhar uma arma, o conflito de valores está já instalado: a inteligência contra a força, o progresso contra o antigo, o evoluído contra o selvagem.
O embate, desde o começo, não é com o bandido Liberty Valance, mas sim entre Stoddard e Doniphon. Interessante questão. Não é tarefa simples domar aquele ambiente selvagem. Poucos ali realmente acreditam no valor dos livros. E ai está a chave para o problema: as pessoas precisam acreditar nele, precisam de alguem em quem se inspirar. Árdua tarefa para Stoddard.
A questão da imagem é bem abordada nesse filme. Os personagens principais se preocupam com ela, tem conhecimento do tamanho de sua força. Ela influencia opiniões, engrandece ídolos e minimiza bandidos. Aí entra o jornal do local, a imprensa, que também é progresso. Logo não seria difícil concluir que Stoddard a defende e, Liberty Valance, o bandido do oeste, a destrói. Para quem ainda não sabe, Valance também é um homem à moda antiga, com uma pistola na cintura e com leis próprias.
O conflito entre força e a inteligência é uma questão bem importante. Acredito que todo homem vive dentro de si esse conflito. Ser agredito, xingado ou humilhado faz até o mais calmo dos homens querer recorrer ao seu animal interior não-domesticado e querer reagir. Temos nos dias de hoje que, digamos, são mais civilizados que os dias do velho-oeste americano, situações que nos fazem lembrar tais conflitos: assassinatos, brigas em estádios de futebol, etc. É disso que o filme fala. Até que ponto um homem deve domesticar sua natureza e ser civilizado?
Afinal, quem venceu? Stoddard realmente matou o facínora? Se sim, então contrariou tudo que havia conquistado e perdeu o duelo...
Ao fim do longa, a resposta, que todos já desconfiávamos no fundo, nos é dada de maneira fácil: Doniphon o matou. Ele perdeu o duelo. Fora convencido por Stoddard, ao longo do filme, que o progresso deve tomar lugar. Tanto acreditou no amigo que inverteu um dos mais importantes valores dos pistoleiros do velho oeste atirando em um homem pelas costas. Ainda, tratou de dar o crédito ao homem da lei, para que este se tornasse uma lenda e todos acreditassem nele. Para que isso funcionasse, decidiu desistir de tudo que tinha antigamente, seus valores, sua casa, seu amor por Hallie, e morreu como um bêbado, pobre e desconhecido.
O excesso didático de Ford muito me decepcionou aqui. Não contente em tirar da boca do próprio assassino a confissão, ainda tratou de reconstruir uma cena que todos já tinhamos na cabeça. Antes de tudo, o personagem de Wayne já tinha passado pelo local do bar, atrás daquela parede, acendendo um charuto, e tudo já fora revelado. Manter o mistério nessa questão faria desse filme bem melhor do que já é, faria dele uma verdadeira obra-prima. Uma escorregada antológica de Ford, para ficar registrada. Reforço, antológica. Sabemos que foi um dos maiores narradores clássicos do cinema, mas isso não mudaria sua característica.
Além de tudo, ver os dois valores antagônicos, representados por dois atores cuja bandeira dos Estados Unidos está praticamente tatuada em suas testas, unidos em prol do progresso e civilidade soa como um ideal muito americanizado. Afinal, John Ford é isso, não posso reclamar. Não me levem a mal, mas não é a toa que ganhou tantos oscars. Fazia qualquer filme, ganhava um oscar, dizia um ''a'', ganhava um oscar, espirrava, ganhava um oscar. Da última vez que contei, vi que John Ford já tinha ganho 376 oscars de melhor diretor.
Finalmente, O Homem que Matou o Facínora é, em poucas palavras, um interessante estudo sobre a importância de uma lenda, algo em que se inspirar, sobre o fim de uma era selvagem e sobre o embate entre diferentes ordens. Tudo na pele de um clássico e envolvente faroreste, com belíssimas cenas e excelentes atuações. Poderia ter sido uma obra-prima, mas por tudo que eu falei, fica mesmo como um ótimo filme. Ainda fico com Os Imperdoáveis ou os filmes de Leone.
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