Guarda-se neste túmulo, se é verdade o que diz, Sebastião
A quem a morte prematuramente levou nas pragas africanas
Não digas que se engana aquele que crê que o Rei vive
Para o morto, pela Lei Cristã, Morte é como se fosse Vidai
A passagem acima se refere aos escritos gravados na suposta sepultura do Rei D. Sebastião, dado como desaparecido após a Batalha de Alcácer Quibir, no deserto de Marrocos no século XVI. Na época as conseqüências dessa batalha foram catastróficas para Portugal e a espera eterna do cultuado Rei pelo povo português resultou em uma crença chamada Sebastianismo. Em uma variante brasileira desta crença, o Rei teria se deslumbrado pelas dunas maranhenses da pequena Ilha de Lençóis e migrado para lá, disposto a salvar aquele povo esquecido e cheio de mazelas. Os habitantes do local seriam
descendentes do Rei, que até hoje poderia ser visto em noites de lua cheia sob a forma de
um touro.
A partir disso, a diretora Larissa Figueiredo faz uma experiência corajosa ao convidar a atriz portuguesa Joana de Verona (Mistérios de Lisboa) para visitar a ilha e interagir com os habitantes do local. Em um primeiro momento uma abordagem investigativa, com um tom bem naturalista documental. Aos poucos, a personagem começa a ter e trocar experiências com os moradores que parecem vê-la como a
concretização da profecia que diz que a filha do Rei voltaria para fazer parte deste Reino Encantado.
O triunfo de O Touro é filmar essa inserção certeira, respeitosa e emocionante de Joana na fabulação daquelas pessoas. A câmera passeia pelos acontecimentos e relatos de visões fantásticas, flutuando como uma entidade, saindo e entrando de conversas e situações de maneira fluída.
O filme dedica longas cenas aos rituais da região, verdadeiros registros etnográficos de uma rica e variada mistura de crenças africanas, européias e indígenas. À medida que esses rituais ocorrem, Joana é afetada por eles e uma virada ficcional acontece
no filme. A personagem, de figura serena, passa a percorrer aquele universo mágico, incorporando o mito de maneira visceral e perturbadoramente realista.
A paisagem exótica de dunas, praias, mangues, o vento que move a areia, os sons misteriosos, as nuvens, a luz solar que diminui lentamente; todos esses elementos penetram a imagem, tornando a segunda metade do filme uma verdadeira fantasia onírica e sensorial potente. Em uma das cenas, Joana entra ofegante em uma casa em ruínas tomada por areia e a câmera com uma imagem totalmente distorcida, se movimenta naquele espaço de maneira fantasmagórica.
O filme se torna um documento antropológico poderoso de um rico folclore, devotadamente propagado por gerações, em uma localidade perdida e parada no tempo. E através do cinema, o que não é da natureza da matéria convoca a realidade com
impressionante certeza.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário