Um filme genial, arguto, cínico, irônico e de uma acidez precisa nos seis relatos que compõem uma narrativa contemporânea, as quais podem ser denominadas crônicas, em linguagem fílmica, dada a matéria prima dos relatos, ancorados em fatos quotidianos.
Diferentemente das atuais produções (que investem milhões em efeitos especiais e não dizem, na maioria das vezes, nada), Relatos selvagens conta com histórias muito bem arquitetadas: tanto do ponto de vista estrutural, quanto do ângulo que escolhe para narrar as histórias em cada relato, tornando-o aberto a múltiplas leituras. Exemplo disso é o cáustico “O mais forte”, cujo título parece perguntar ao espectador: é o mais forte ou o mais estúpido? E a cada cena desse relato, somos também violentados não apenas pela insanidade e selvageria das ações, mas pela “crueza” das cenas, que expõe o máximo de nossa estupidez. Quem não já vivenciou algo parecido em nossas rodovias e, principalmente, no nosso estressante trânsito de cada dia? Seja no papel do dono do Audi, seja na pele do “preto recalcado” com sua lata-velha, atrapalhando a ultrapassagem do potente Audi. Tudo nesse relato é engenhosamente montado: desde os carros e os estereótipos que os dirigem, até mesmo o detalhe de que os vidros do Audi são blindados e, se não permitem serem quebrados após várias tentativas, também não permitem que o motorista escape de dentro do veículo.
Outro destaque é o “Ratazanas”: curto e preciso. A atendente, o cliente e a cozinheira trabalham em profunda simbiose na cena. E a empáfia com que o cliente trata a atendente faz com que o espectador crie mais asco por ele, não condenando (pelo menos eu não condenei) a atitude da cozinheira, que, nesse relato, funciona como uma consciência selvagem da atendente que, talvez, atada por questões morais, não execute tão friamente as ações da cozinheira; esta sim livre do contrato social de civilidade. E o que dizer de um comissário que não somente reúne todos aqueles que o achacaram ao longo de sua vida em um voo e, não bastasse isso, resolve que o avião irá colidir com a casa dos pais no exato momento que estes estão no jardim em momento de descanso? Afinal, nada mais coerente do que matar todos aqueles responsáveis por espinafrar Gabriel Pasternack, cuja ruína da vida, pelo menos para seu psicanalista (também preso no voo para a morte), é culpa dos pais – simpáticos velhinhos no jardim de casa.
Com um tom menos dinâmico do ponto de vista da ação, mas bem dinâmico em seus diálogos precisos e certeiros, “A proposta” evidencia que num mundo onde o que reina é a lógica do mercado, tudo e todos estão à venda! Sem exceções de cor, religião, posição social, etc. E o interessante nesse mercado capaz de tudo negociar é que se os ricos expropriam os pobres em vários níveis, os pobres (vistos quase sempre com o olhar de piedade), quando se encontram em posição favorável, não hesitam em aplicar no rico a mesma lógica de expropriação e exploração a que são/estão submetidos e, nesse ponto, “A proposta” se mostra genial ao expor esse ardiloso mecanismo, expondo ao telespectador que tanto o caseiro, quanto o empresário são igualmente vis e inescrupulosos com a diferença que o empresário dispõe dos meios de exploração os quais, nas mãos do caseiro, seriam igualmente manejados com a mesma finalidade de expropriação. E quanto ao advogado? Para mim, SEN-SA-CIO-NAL!! Ele é a prova concreta de que o que interessa não são as leis em si mesmas. O principal é saber armar, tramar, contar uma boa história, com personagens e fatos verossímeis, atentando-se para que não fiquem pontas soltas o que, infelizmente, ficou...
Já o explosivo “Bombita” coloca em cena a corrupção que assola, quase em totalidade, o serviço público: não importando se é argentino ou brasileiro (talvez a única diferença seja a língua!). A máquina pública não está aberta ao diálogo e transforma o serviço público, que deve servir ao cidadão, um ser humano (isso é obvio, mas é preciso lembrar, dadas as circunstâncias do mundo contemporâneo), em comandos automáticos repetidos também automaticamente por funcionários-públicos-maquinizados. Acompanhando a saga citadina de Simon, não é difícil se colocar em seu lugar. E que não adianta usar o bom senso, a cordialidade, a civilidade e a maior arma que se tem em nosso século: a palavra. Esta se mostra monológica, pois ninguém ouve ninguém e, não por acaso, Simon diz ao atendente: “Você está me escutando?”. E não. Ele não está ouvindo: à semelhança da máquina, ele funciona por comandos binários: multado/não multado; estacionamento legal/estacionamento proibido e por aí vai. Qual a saída, então? Confesso que me senti de alma lavada com a solução encontrada por Simon.
Por último, mas definitivamente não menos importante, “Até que a morte nos separe” não apenas desconstrói a visão romântica de que se reveste o casamento, mas também acena para outra possibilidade que, a meu ver, é a mais honesta e é belamente encenada por Ariel quando, em gestos com as mãos, parece querer perguntar à sua noiva: então, eu sou isto: um traidor, um canalha, cheio de defeitos, mas, mesmo assim, quero ficar com você. Me aceita do jeito que eu sou? E assim, pelo “descasamento”, esse relato mostra uma possibilidade de casamento não verdadeiro, mas pelo menos honesto.
Enfim, vale imensamente assistir ao filme e se deliciar com cada cena muito bem construída e amarrada pelo fio da vingança em diversos graus de violência, evidenciando a constante tensão entre o sujeito, o outro, o mundo e suas instituições (muitas já falidas de longa data).
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