Quem tem o privilégio e a sorte de conhecer os trabalhos de Pedro Almodóvar dificilmente engolirá os “enlatados” entupidos de escorbuto que nos são oferecidos pela grande maioria dos filmes vendáveis. “A má educação”, assim como “Tudo sobre minha mãe” faz uma viagem pelo submundo da homossexualidade e mostra como, cada vez mais, as dicotomias que insistem em separar as coisas, vem sendo rasgadas. Mais do que isso, os filmes de Almodóvar flagram a condição do ser humano de maneira inusitada e brilhante.
No passado, em um internato católico comandado por padres, Ignácio (Nacho Pérez) é vítima dos abusos do Padre Manolo. Ainda nesse cenário existe Enrique (Fele Martínez), também interno do colégio. Ignácio e Enrique envolvem-se pela primeira vez em uma sala de cinema do colégio. Anos mais tarde, descobrimos que tanto Enrique quanto Ignácio foram o primeiro amor um do outro. Após esse encontro no cinema, os dois encontram-se, à noite, no banheiro do colégio onde são flagrados pelo Padre Manolo que, dias depois, expulsa Enrique do colégio mesmo após o pedido/proposta de Ignácio sobre a permanência de Enrique no colégio.
Esse é o eixo central do filme. A temática, como pode ser vista, aborda a pedofilia cometida por membros da igreja católica. A princípio, tal temática pode não ser tão atrativa para o telespectador. Mas a maneira como Almodóvar nos conta a história é simplesmente genial. Vamos, pois, a ela.
Um dos pontos interessantes do filme é o cuidado de Almodóvar em não atribuir à temática da pedofilia um tom piegas e clichê. Ignácio, quando pequeno no colégio, não é um garoto simplesmente vitimizado assim como Manolo não é um algoz total. Toda relação é de mão dupla. Já nos diz as teorias psicanalistas que não existe Sade sem Masoque. Que fique claro que não estou aqui para fazer apologia à pedofilia, de forma alguma. Mas ao trazer à cena tal temática, e abordá-la do modo como abordou, Almodóvar lança uma luz diferente na temática e discute, inclusive, uma temática acerca da sexualidade humana que, para bons entendedores, o filme se mostra mais do que um simples filme, mas também um ensaio sobre tabus que perpassam a nossa sociedade.
Esteticamente, a arquitetura do filme é genial, e explico o porquê. A obra-prima de Almodóvar é construída através de um recurso muito frequente na Literatura: a metalinguagem, que consiste em encenar algo a partir dela mesma. E é dessa maneira que o filme é contado: é o filme contado pelo próprio filme, é a interpretação dentro da interpretação e isso é simplesmente GE-NI-AL! Somente após o término da película que minha ficha caiu. E é assim mesmo, ela vai cainda paulatinamente.
Esse recurso explorado por Almodóvar é interpretado magistralmente por Gael Garcia Bernal que dá vida a três personagens. Anos após o ocorrido no colégio, somos apresentados a Ángel, nome artistíco do suposto Ignácio que, desde a separação no internato não via seu primeiro e fugaz amor, Enrique que agora é um diretor de cinema sem muita inspiração que busca em notícias de jornais subsídio para roteirizar algum filme. Após o encontro de ambos na casa de Enrique, Ángel diz a Enrique que procura trabalho e deixa com ele um de seus trabalhos escritos intitulado "A visita". Este escrito por sua vez é uma espécie de relato autobiográfico escrito por Ignácio rememorando seus tempos no internato e os abusos sofridos pelo Padre Manolo e a separação brusca de Enrique.
Inicialmente, parece confuso. Isso porque, como disse anteriormente, há uma interpretação dentro da interpretação, e graças ao impecável trabalho técnico de Almodóvar essas duas interpretações são sutilmente "descoladas" para que o telespectador perceba o que está ocorrendo. Na verdade, Angel, que se diz Ignácio, não o é. Angel é Juan, irmão do verdadeiro Ignácio (que se transformou em um travesti drogado que busca dinheiro para terminar de fazer os reparos em seu corpo). O verdadeiro Ignácio foi morto por Padre Manolo (que largou o seminário e agora trabalha em uma editora) e pelo próprio Juan/Angel. Ambos deram um dose potente de cocaína para Ignácio que após consumi-la morreu.
Nesse emaranhado, à primeira vista confuso, que Almodóvar inova ao abordar uma temática "batida" e conhecida. No que se refere à montagem do filme, é claro que não posso deixar de falar do ambiente colorido e misturado de Almodóvar. Existe um sincretismo nos espaços encenados no filme. Há a mistura do profano com o sagrado, da instituição religiosa e o mundo homossexual que tanto é rechaçado e condenado pela própria igreja católica. Ignácio e e Padre Manolo representam o rompimento entre esses espaços, a princípio, opostos: relação homossexual e pedofilia. É nesse ponto que Almodóvar inova em seus filmes. Ele flagra a condição humana. Somos apresentados a personagens que encenam a dúvida, o desejo lascivo dentre outros sentimentos carnais que talham o homem. É uma espécie de luta entre moral e instinto.
Além desse sincretismo, existe, é claro uma anarquia de cores que pintam as fotografias do filme transformando-as em verdadeiros quadros da mais alta e trabalhada pintura. Vejam-se, por exemplo, a casa de Enrique, as roupas usadas por Angel que se contrastam com o colégio cujas cores são mais comportadas e menos gritantes.
Enfim, é isso que tenho a dizer sobre esse belíssimo trabalho de Almodóvar que parece ter encontrado o mapa da mina. A partir de enredos simples e comuns, ele os inova na maneira de contar. E para além disso, podemos perceber nas obras de Almodóvar o que assola o homem a milhares de anos e pode ser lido em em Shakespeare, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, dentro inúmeros outros autores: o homem é e não ao mesmo tempo. Não há como separar o bem do mal, nem o moral do imoral, pois eles nascem justamente um a partir de outro. E somos assim, oscilamos do caos à ordem um piscar de olhos.
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