É interessante notar que, mesmo após tantos anos de descolonização, nosso país ainda é colonizado pelo discurso Eurocêntrico. Francamente, um país que ocupa a terceira posição no ranking de moeda mais negociada em bolsas no mundo, já deveria ter se livrado do discurso “vamos civilizar esse povo” ou, pelo menos, lê-lo com mais perspicácia. É exatamente esse o discurso que perpassa toda a produção de Lixo Extraordinário. Parece até que regressamos ao tempo do descobrimento onde espelhinho de R$ 1,99 era trocado por pedras de ouro em um escambo vil e trapaceiro. Embora tão pungente como economia mundial, somos um povo ainda solapados pelo selo “From Europe”.
Co-produzido pelos estúdios 02 Filmes (brasileiro) e Almega Projects (Reino Unido), Lixo Extraordinário é um documentário composto com algumas pitadas de realidade que, no entanto, se mostram tão falsas e risíveis quanto o inglês falado pela esposa de Vik Muniz. Essa cena do inglês é hilária! Falarei dela mais adiante. Mas voltando ao enredo do documentário, este é sobre a trajetória do lixo dispensado no Jardim Gramacho (RJ) e como será transformado em arte pelo renomado artista plástico BRASILEIRO Vik Muniz. É uma espécie de do lixo ao luxo.
Para fazer parte do documentário, são escolhidos alguns dos catadores do Gramacho que terão cenas de sua vida retratadas nas obras que Muniz fará com o lixo. A capa do documentário, inclusive, é uma releitura do famoso quadro de Jacques-Louis David que retrata a morte de Marat, importante participante da Revolução Francesa. Para ser o “novo” Marat é escolhido Tião, presidente da Associação dos Catadores do Jardim Gramacho. Ao lado dele, ainda, está Suelem, uma jovem, à época do documentário, com menos de 18 anos e já com dois filhos. Existem outros catadores, mas não falarei deles aqui.
Durante o documentário, a vida desses catadores escolhidos para participarem da produção vai sendo intercalada ao filme. E é aí que o próprio documentário se trai. Lembram-se do inglês falado pela esposa de Vik que mencionei acima Pois é. Há uma cena do documentário, umas das primeiras, em que Vik e sua mulher discutem sobre o projeto no Jardim Gramacho e sobre a grande TRANSFORMAÇÃO que ocorreria na vida dos catadores que participariam da produção. Detalhe, o casal, brasileiríssimos da Silva, mantém o diálogo, o tempo todo, em Inglês. É. Pasmem, mesmo sendo falantes nativos do Português, eles dialogam em inglês até que, no meu ponto de visto, é a melhor cena do documentário: irritada com Vick por ele não deixá-la falar, sua esposa o interrompe e adivinhem como: falando em Português, é claro! Ri muito nessa cena! Porque fala sério, qual a razão para dois brasileiros, em um documentário produzido em conjunto entre Brasil e Reino Unido, falarem em Inglês Essa é apenas uma das cenas que desconstroem o discurso de “reciclagem e humanidade” que o documentário tenta mostrar e que, a maioria esmagadora dos espectadores brasileiros engolem, dizendo que o documentário é “um relato crítico de qualidade sem abordagem apelativa, focado apenas na arte e no ser humano”. De fato, não posso negar que a produção mostra um fantástico trabalho de reciclagem, de arte contemporânea. Mas que é focado no ser humano e que é crítico de qualidade sem abordagem apelativa é demais. Observem o discurso egocêntrico do filme: direto de Nova Iorque (atual moradia de Vik) ele (Vik) discute com sua esposa a TRANSFORMAÇÃO que os catadores sofrerão em suas vidas. Qual transformação A de um estranho chegar dizendo o que é certo e o que é errado Chegar com o discurso de “vim salvá-los dessa vida”. É isso que ocorre no documentário. Em momento algum os catadores escolhidos são tratados como sujeitos que têm algo a oferecer, a mostrar. São apenas objetos que podem ser transformados em arte para serem leiloados na Inglaterra. Isso lembra alguma coisa Ah sim, claro. Lembra o discurso colonizador de “vamos civilizar esse povo pagão”.
Como já disse, o trabalho de Vik é fabuloso e o reconhecimento que ele tem internacionalmente comprova isso. Mas infelizmente ele se deixou levar pela reificação que fizeram dos catadores do Jardim Gramacho realizada no documentário. Aliás, vale lembrar que Tião (o presidente do Jardim Gramacho) foi garoto propagando da Coca-Cola com o slogam: “somos catadores de materiais recicláveis”. É. Eufemismo que soa até irônico se considerarmos quem o fala. Mais um slogam para compor a nossa farta galeria do politicamente correto.
Enfim, vale a pena ver o documentário. Mas com olhos atentos e críticos. Só mais uma coisa: o nome do documentário, pelo menos em Português, faz jus ao conteúdo – o título Lixo extraordinário comporta, pelo menos duas interpretações. Assista-o e escolha a sua.
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