O jovem diretor, ator e roteirista canadense, Xavier Dolan, brinda o público ávido pelo bom cinema com seu terceiro longa: o conflituoso Laurence Anyways. Muitas críticas que já li sobre esta produção recaem na tônica da “barriga” que o filme do jovem diretor apresenta. Alegam, os críticos, que poderia ter sido cortado alguns minutos do filme sem nenhum prejuízo.
Particularmente, não comungo com essa crítica que, para ser ainda mais justificada, atribui os excessos de Dolan à sua juventude. Talvez o seja. Mas, para mim, que praticamente tenho a mesma idade de Dolan, com um ano a mais para mim, os exageros sinalizam outros efeitos e não “barrigas”. Penso que esse anacronismo entre gerações provoca muitos estranhamentos e, quando da estreia de um novo nome de destaque no cinema, dois times entram em campo: aqueles que idolatram e aqueles que torcem a cara. À semelhança do protagonista do filme, Laurence, estou em trânsito, embora, no momento, caindo de amores por Laurence Alia, ou, Laurence Anyways. Por isso, vamos a alguns pontos belíssimos e pungentes do filme.
A problemática do filme reside no fato de Laurence Alia, professor de Literatura em uma escola secundária, em seu aniversário de 30 anos, declarar à Fred, sua namorada, que precisa se transformar em uma mulher, pois há 30 anos ele vive uma mentira. Imagine o choque de Fred? Esta, inclusive, como reação normal, considerando os padrões de sexualidade socialmente estabelecidos, pergunta a Laurence se ele é homossexual. Diante dessa pergunta, outro espanto: Laurence não é homossexual, ama Fred, mas não nasceu para ser homem e, negando se tornar uma mulher, continuará negando a si mesmo.
Desenhado esse quadro, o filme se movimento evidenciado os vários percalços por que Laurence e Fred passam. O apoio inicial oferecido por Fred fica arrefecido diante de uma crise financeira e, sobretudo, pela brutal recriminação social: Laurence é demitido da escola, mesmo sendo excelente professor; é agredido na rua, é renegado pelo pai e distante de sua mãe, interpretada de modo estupendo por Nathalie Baye. Que seja dito que a transformação de Laurence é retratada em um período compreendido por 10 anos – 1989/1999. E, se hoje o discurso da pluralidade, inclusive relativo à sexualidade, ainda sofre recriminações, em fins da década de 80 não era diferente e ainda havia o agravante de que a homossexualidade era um transtorno mental. Por isso mesmo o embate entre Fred e Laurence que, declaradamente se amam, é algo complexo e diante de todas as injunções impostas pela sociedade que, vilmente, cobra um preço altíssimo, sustentar o amor de ambos se torna, da parte de Fred, insustentável. E é aí que ela se afasta de Laurence, se casa com um bom homem, um homem normal, um “homem de verdade” e constitui uma família normal, padrão, socialmente aceitável e chancelada pelos bons costumes.
O legal desse conflito é que não cabe condenar Fred por sua covardia – e seria covardia? E, muito menos, condenar Laurence por sua coragem ou egoísmo por assumir-se para si mesmo, se lixando para o mundo. Esse ponto de tensão atravessa todo o filme cujas extravagâncias, a meu ver, ganham força ao construir uma estética cinematográfica que sugere a possibilidade de se viver no imaginário, solto das amarras culturais. Menciono, quanto a isso, cenas memoráveis: a cena colorida e insólita, na Ilha Negra, quando Laurence e Fred caminham livres, praticamente tocando as nuvens ou, quando, após anos sem se ver, ao reencontrarem-se, Fred pula nos braços de Laurence e, ainda, a cena do baile, no qual Fred conhece seu futuro marido: os vestidos, a música, a maquiagem, a extravagância generalizada, sugerindo, como efeito de sentido, a liberdade, um grito às coerções, amarras, imposições de padrões tiranos e irretratáveis que anulam as pessoas.
Com toda essa encenação, não se pode deixar de abordar as atuações: o destaque vai para Suzanne Clément, desde seu visual não padronizado, rebelde em cabelos vermelhos com raspagem lateral, até a arrepiante cena de fúria no restaurante em que Fred extravasa todo seu ódio contra o sufocamento de que tem sido vítima, junto com Laurence, espinafrando uma garçonete bem inconveniente. É visível o conflito inflado no olhar da atriz o tempo todo, inclusive na festa de Natal em que todos riem e celebram e ela, na cozinha, limpa a bagunça e parece tentar se convencer de que aquela vida, padronizada, é o melhor modelo para se viver. O protagonista, interpretado por Melvil Poupaud, não tem a mesma explosão de Fred. É mais contido, embora nas cenas de discussão com a namorada ele consiga sustentar um personagem vivaz e capaz de tudo para sustentar o caminho que escolheu. E, por fim, embora pouco em cena, Nathalie Baye, dá um show com sua secura, sarcasmo na pele da irretratável mãe de Laurence que, embora isso, o ama demasiadamente.
Se você curte uma boa produção cinematográfica. Sobretudo aquelas que não reiteram o discurso socialmente estabelecido, sem realizar questionamentos variados, não se frustrará. Vale pelas atuações, pelas cores, pela extravagância e pelas chocantes e arrebatadoras falas, umas das quais reproduzo abaixo o diálogo entre Fred e Laurence, respectivamente:
- Quem você pensa que é, hum? Dá pra botar os pés no chão, por favor?
- Botar os pés no chão? É isso que você disse? Botar os pés no chão? Está ouvindo o que você fala?
- Mude o disco. O que você quer que eu fale?
- Pare de falar besteira, merda! É um insulto para nós. Que se foda! Eu não quero botar os pés no chão. Estou cagando. Depois de voar tão alto... eu não quero descer.
- Então, fique lá em cima.
Ao findar a película, cabe ao espectador a escolha: pés no chão ou voo alto? Ou, ainda, há uma possibilidade de conciliação? Acredito, ceticamente, que no modelo social, em sentido latu, que aí está, não há reconciliação.
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