Acostumados que estamos à estética cinematográfica estadunidense, a primeira experiência em assistir ao longa francês “Amor” pode ser de difícil digestão. O circuito comercial de cinema mundial arrasta milhões pelo mundo viciados em produções carregadas de efeitos especiais, abarrotadas de trilhas sonoras as mais diversas, maquiagem e efeitos gráficos impecáveis, atores e atrizes lindos, de renome internacional, prestigiados pelo Oscar e figurinhas certas no mais famoso tapete vermelho do cinema: Hollywood. Quem já não ouviu and the Oscar goes to...?
Roteirizado e dirigido pelo alemão Michael Haneke, Amor é uma parceria alemã, austríaca e francesa. Ambientado na Paris contemporânea, o longa narra o quotidiano de um casal de idosos: Anne e George, ambos musicistas, vivem num confortável apartamento vivendo as trivialidades do dia a dia: tomam café juntos pela manhã, almoço, mercado, leitura de jornal, música e diálogos fazem parte da vida do casal.
O conflito do filme se inicia quando Anne sofre um derrame que a afeta tanto física, quanto mentalmente. A partir desse ponto conflitivo, o que se assiste é uma gradação das consequências oriundas do derrame. Anne tem seus movimentos, inicialmente, do lado direito, limitados, começa a confundir memórias, inicia a perda da fala, passa não mais controlar suas necessidades fisiológicas até que outro derrame acontece e ela permanece, de vez, acamada, sendo necessários os cuidados de duas enfermeiras contratadas por seu marido que, até então, cuidava de Anne sozinho.
Antes de ainda chegar a um estado crítico, Anne, em diálogo curto e direto com George é taxativa ao dizer que:
Anne: Sei que só poderei piorar. Por que eu devo nos infligir isto, a você e a mim?
George: Você não está me infligindo nada.
Anne: Não precisa mentir, George.
George: Coloque-se no meu lugar. Você já pensou que poderia ter ocorrido a mim também?
Anne: Claro que pensei. Mas imaginação e realidade têm pouca coisa em comum.
George: Mas você melhora a cada dia.
Anne: Eu não quero mais. Você tem feito tantos esforços para facilitar tudo para mim. Mas eu não quero continuar. Por mim. Não por você.
O diálogo acima acontece de modo seco, entrecortado pela dor tanto de Anne, quanto de George, diante da dura realidade. Anne é clara ao dizer que não quer mais continuar. Não deseja mais a vida, pois, por sua fala, considera a sua situação uma negação à vida. George, por sua vez, tenta dissuadi-la, solicitando que ela continue. Porém (aí precisaríamos ver a cena), enquanto as palavras de George tentam acalentar a esposa, seu olhar, a pausa na fala e seu semblante pouco expressivo concordam com a fala de Anne que, por sua vez, “desmascara” George, dizendo-lhe que não precisa mentir para ela. Ambos, em verdade, concordam que aquele estado não é viver. E não há choro, não há gritos, não há excessiva autocomiseração. Há, sim, a dor. Mas esta é estoicamente enfrentada pelo casal que nunca transforma a desgraça que sobre Anne se abate em um drama barato, com rios de lágrimas e lamentações pela condição de Anne.
No geral, é estratégia comum a todo o filme o tom de comedimento, sequidão. E não faltam elementos na produção que evidenciam esse tom. Vejamos, portanto, algumas estratégias de construção do filme que apontam para tal tom. A primeira estratégia que eu menciono é exatamente a atuação dos atores, conforme mostrei na análise do diálogo anterior. Outra evidência são as cores que dominam o filme: são tons majoritariamente mais escuros: cinzas, pretos, azul marinho entre outras cores. Tons esses que estão nas roupas, nos móveis e nos cômodos do apartamento. A própria iluminação do filme é mais branda, com pouca intensidade. A própria luz do dia, entrevista pela janela do quarto do casal, mostra um dia com céu pouco luminoso, sem as vibrantes cores azuis tão típicas de dias ensolarados.
Outra estratégia que salta aos olhos são os planos de filmagem. Estes são alongados, estáticos. A câmera que filma permanece constantemente parada, travada nas cenas filmadas. E isso gera inúmeros efeitos, dentre os quais é possível citar a monotonia do quotidiano, a dureza da realidade e talvez o prenúncio de que não haverá um final feliz para o desenlace da narrativa fílmica. Junto com essa técnica, não há trilha sonora que embala o filme, sugerindo, como de costume no cinema, no geral, a tristeza, a alegria, a dor, a felicidade, o medo, etc. A ausência de música coadunada aos planos fixos intensificam a sequidão do filme, conforme mencionei mais acima. Os raros momentos com música (que não são exatamente para embalar as cenas) ocorrem em algumas lembranças de George ao rememorar Anne ao piano e, no início, quando o casal é espectador em um concerto. Sentados na plateia, eles observam o pianista enquanto a câmera, novamente estática, filma a plateia contemplando o concerto, enquanto nós, espectadores do filme, olhamos para a plateia que, em certa medida, também nos olha, evidenciando, com esse espelhamento, tanto o nosso lugar como espectador do filme, quanto o dos próprios protagonistas que são espectadores do concerto, além de sugerir, o espelhamento, que observamos os atores que, por sua fez, observam o concerto.
Relativamente ao cenário, com exceção da mesma cena inicial acima mencionada, toda a trama se desenrola no apartamento do casal. Apartamento este que se torna palco de um amor duramente doloroso e solapado pela crueza da realidade: a iminente morte de Anne que definha aos olhos de George, aos olhos do espectador e aos próprios olhos.
Sobre esse amor é interessante observar que, ao contrário do que se anuncia do título de igual nome, em nenhum momento se ouve a palavra pronunciada entre o casal. Aquilo que o título apresenta, pela palavra, é encenado, no filme, de outras formas: são gestos, olhares, toques, cumplicidade, conversas triviais, músicas. George se recusa a internar Anne, mesmo com sua piora inevitável. Ele passa a cuidar de todas as necessidades da esposa: pega um livro, ajuda no banho, na higiene pessoal, prepara as refeições, alimenta, cuida da medicação. Aí me parece estar o amor anunciado no título. Um amor fincado na realidade, no quotidiano e na simplicidade. Um amor que admira e é traduzido em sutis e delicadas cenas como uma das iniciais, logo quando Anne e George retornam do concerto e ele, ao tomá-la o casaco para pendurá-lo, diz-lhe: “Eu lhe disse que você estava muito linda esta noite?” ou ainda, igualmente delicada é a cena na qual Anne já começa a confundir as memórias e a não pronunciar bem as palavras e George, ao ouvi-la balbuciar, tentando, com muita dificuldade, dizer algo, interpreta a fala confusa da esposa, ressignificando-a, à semelhança de uma mãe que interpreta a fala da criança que ainda não domina bem a língua. Outra cena que traduz esse amor acontece numa conversa à mesa, no almoço, quando George narra à Anne um episódio de sua infância e entre risos e cumplicidade de ambos, Anne diz: “algumas vezes você é um monstro.”, ao que se sucede uma pausa e ela completa: “Mas é gentil” e George, não perdendo o tom humorado da cena, diz: “Posso lhe pegar outro copo?” e os dois caem no riso.
Nem sempre o filme segue esse ritmo descontraído. No geral, como já dito, o tom da produção é a sequidão, uma dor velada pelos protagonistas que já sabem qual o fim espera por Anne. E nesse ponto o diretor pareceu acertar ao intercalar algumas (mesmo que poucas) cenas em que há risos entre o casal, de modo a contrabalancear o infortúnio que acometera Anne.
Um dos momentos mais dramáticos do filme é a cena do tapa dado por George em Anne. Cena esta que, ambiguamente, pode despertar, no espectador, tanto raiva quanto compreensão relativamente à ação de George. Nesse momento, por exemplo, continuar viva já se torna algo insustentável para o casal. Anne já está completamente acamada e mais dependente de cuidados de terceiros. Outra cena, igualmente tensa e pouco esperada, é quando, após narrar um longo episódio de sua infância para Anne, agora já uma completa moribunda de cujos gritos se distinguem apenas a palavra “dói”, George a sufoca até a morte com o travesseiro, imprimindo, nesse gesto, ao que parece, todas as suas forças para por fim não apenas ao sofrimento de Anne, mas ao seu próprio. Tudo isso sem música ou movimento de câmera, como se o diretor dissesse ao espectador: a realidade é dura, sem efeitos especiais ou trilha sonora que a torne menos áspera.
Muito ainda se poderia dizer sobre o filme, mas o que foi mencionado, por ora, é suficiente. Suficiente para se comprovar o que anunciei no início deste texto: a difícil digestão de “Amor”. Difícil por ser uma produção pouco convencional se comparada ao padrão estético cinematográfico a que estamos expostos. Difícil porque, ao não ser protagonizada por um casal na flor e beleza da juventude, traz como protagonistas um casal octogenário. Difícil porque a velhice não tem espaço na cultura da juventude eterna, simplesmente é apagada e relegada a uma espécie de limbo social, o que é o cúmulo da ironia, visto que todos (é o esperado) chegarão à velhice. Difícil porque o que consumimos são histórias de amor cujo final se encerra sempre com o famoso “e foram felizes para sempre” e são ambientadas em cenários floridos, coloridos com luxo e riqueza. Difícil porque somos românticos e idealizamos o outro em toda uma perfeição não do outro, mas existente apenas na nossa cabeça. Difícil, enfim, porque é uma produção que vai na contramão de tudo que nos é vendido como signos de felicidade e, é claro, de amor.
Vale muito a pena assistir ao filme: seja pela representação de amor proposta, seja pelo modo como a história é narrada, seja pela estética fílmica adotada, descortinando ao espectador outras possibilidades para pensar, dentre outras temáticas, aquela proposta no/pelo filme e anunciada no título: Amor.
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