Porque o filme "A vida em si" tenta ser o "Pulp Fiction" dos dramas. Contém Spoilers.
"A vida em si", drama escrito e dirigido por Dan Fogelman, presta uma homenagem fofa a Tarantino, principalmente e escancaradamente a Pulp Fiction (PF).
No entanto, aplicar "a fórmula" de PF após vinte e cinco anos para um filme de drama foi uma ideia no mínimo ousada, pra não dizer doida, mas que infelizmente não trouxe, nem de longe, o mesmo impacto e coesão do filme Tarantinesco.
Pra quem ama o cinema e não apenas enredos, se perceber diante de uma cena que remete a PF é um exercício até divertido, porém que não vai ganhar quem o vê apenas por isso. Em "A vida em si" é possível destacar diversos momentos que aludem ao PF, uns mais escancarados, outros mais sutis.
Assim como PF, o filme já começa com Samuel L. Jackson abrindo a narrativa da história, mandando alguns esporros ao cameraman sem dó nem piedade do espectador, assim como Jules também não tinha, nem dó, nem piedade. Ainda bem que a narração não passa de uma tentativa de escrita de roteiro do até então personagem principal Will, bem interpretado pelo talentoso Oscar Isaac.
Aliás, o próprio personagem Will, sem dúvidas o melhor elaborado e desenvolvido do filme, se mostra um aficionado por cinema, especialmente por Tarantino, o que percebemos mais adiante ser um instrumento de fuga para seus traumas até então desconhecidos.
Inclusive durante o capítulo um, que se passa todo em um divã, no qual são feitos diversos flashs para passado do personagem, em um desses flashs Will afirma que ele e a personagem Abby (Olivia Wilde), até então nos apresentada como uma ex-esposa, pretendiam escrever um roteiro à lá "casal Tarantino", momento em que os personagens aparecem rapidamente assistindo PF, mais especificamente a cena em que Jules (Samuel L. Jackson) e Vincent (John Travolta) tentam limpar o carro.
Cabe ressaltar que o capítulo um também é o melhor elaborado, até mesmo podendo ser identificado um sutil "foreshadowing": logo após a referida exibição de PF enquanto Jules e Vicent limpam os miolos do carro, o personagem de Will cita a morte por suicídio um colega de internação, exatamente o destino que aguarda Will ao final do capítulo, o suicídio com miolos pelos ares. O que também é outra referência ao PF, um personagem morrendo com um tiro inesperado na cabeça, pegando o espectador de surpresa bem no meio do filme.
Falando em capítulos não é preciso muito para demonstrar a grande maioria dos filmes de Tarantino são divididos dessa forma, inclusive com os cortes para o título do capítulo na tela, assim como em "A vida em si".
Em meio a tudo, apenas para não deixar para trás, a terapeuta que acompanha Will no divã já havia morrido na segunda cena do filme e reaparecido após a cena de Will tomando café exaltado em um restaurante. Nessa altura não é preciso dizer qual filme se inicia com uma cena de café com pessoas exaltadas em um restaurante, assim como não é necessário dizer qual o personagem "ressuscita" diante da tela no mesmo filme.
Sendo cansativo, porém necessário ao que se que demonstrar, comparando-se as duas cenas do restaurante, vê-se que a luminosidade da cena é a mesma, com o mesmo desfoque de fundo nas janelas e paleta de cores.
A homenagem ao PF mais clara, longa e um pouco enfadonha é o corte para a festa em que Will pede Abby em casamento, estando os dois fantasiados de Vincent e Mia Wallace (Uma Thurman), com direito a reprodução a clássica cena da injeção de adrenalina no coração.
A partir daí o filme aparenta ter deixado Tarantino e PF para trás, levando a crer que os personagens caminhavam para um drama de separação romântica e, como usualmente é, nos escondendo os motivos dessa separação.
O único ponto baixo do capítulo um fica por conta dos flashs em que Will e a Terapeuta participam ativamente assistindo o passado de forma inoportuna.
Terminado o elogiado capítulo um de forma surpreendente. O filme segue com a pouco desenvolvida história da filha do casal Will e Abby, Dylan, referência ao cantor bastante explorada filme. Pareceu necessário correr com a história da menina para que o filme chegasse logo ao capítulo III sendo justamente ai o maior pecado da tentativa de fazer um PF versão dramalhão.
O filme tenta reproduzir a estrutura de roteiro de PF, com três histórias diferentes, não lineares e simultâneas, mas que se encaixam formando um todo sem um maior destaque ou personagem principal específico.
Acontece que Tarantino foi o primeiro e um dos poucos a conseguir elaborar essa estrutura de roteiro com perfeição sendo um dos motivos que levam PF a ser um marco na história do cinema.
O capítulo III conta a história de amor de Javier (Sergio Peris-Mencheta) e a lindíssima Isabel (Laia Costa), o filho Rodrigo (Àlex Monner) e ninguém menos que Antonio Bandeiras no papel de Vincent Saccione, chamado por todo o filme de Sr. Saccione, mas que nas últimas cenas tem seu primeiro nome revelado, Vincent te lembra alguém?
Esse capítulo é um drama a parte, emocionante, porém comum. No início do capítulo, após Vincent contar sua história pessoal ao empregado Javier, há um flash absolutamente desnecessário para o casal Will e Abby fazer uma breve revisão do argumento que dá nome ao filme, sobre a tese de que não há nenhum narrador de histórias confiável, que o único narrador confíavel seria a própria vida em si, mas que nem mesmo a vida em sí é confível pois ela nos engana.
O argumento é interessante, mas ou poderia ter sido melhor explorado no filme ou até mesmo ter sido guardado para outro trabalho. Fica a impressão de que o roteirista escreveu o roteiro como se fosse o primeiro e último ao mesmo tempo, precisando jogar todas as ideias, histórias e personagem que lhe vieram de uma vez só, em um roteiro só, uma salada mista só. E o pior, tendo a obrigação de conectar tudo para conseguir fazer o seu PF versão drama.
Enfim, essas histórias se conectam, não de uma forma ruim ou esdrúxula, mas que ultrapassam o liame entre o que é genuíno e o artificial, muito também pelo recorte temporal do filme ser muito amplo, ponto em que Tarantino foi, só pra variar, perfeito em PF.
O recorte temporal de PF, excetuando a cena e em que Butch (Bruce Willis) ganha o custoso relógio de guerra que era de seu pai, é curto ou curtíssimo.
Pode-se afirmar que PF se passa em dois ou três dias enquanto "A vida em si" precisou passar pela história de quatro gerações das famílias envolvidas para "fechar" o enredo. Mais um pouco e Macondo ficaria pequena para tanta gente.
O leitor mais apaixonado pelo enredo pode até encarar como duros os pontos acima destacados, mas no geral não se trata de um filme ruim. Pelo contrário, os pontos fortes, muito pela primeira parte, prendem o espectador até o fim ansioso por todo o encaixe.
Não tivesse, pela estrutura de roteiro, se proposto a atingir um sarrafo tão alto como PF, com aglutinações mais simples e curtas poderíamos estar diante de um drama, menos inovador é verdade, porém mais coeso e original.
Destaque também para as boas atuações de Laia Costa e Sergio Peris-Mencheta.
A escolhas de câmera, fotografia e paleta de cores deixaram as tristes histórias um pouco mais leves, o que agradou de uma forma geral e contribuiu para o desfecho "autoajuda".
Por fim, "A vida em si", quase no finalzinho do filme ainda tem uma segunda cena de restaurante, de um casal, se trata de Rodrigo e sua namorada, personagem que parece ter sido criada apenas para que essa cena pudesse existir. Como na vida atual em si, eles apenas terminam o namoro, as carteiras recheadas de dinheiro e os assaltos a restaurantes ficaram para trás com o final dos nos anos noventa.
Cássia (MG), 4 março de 2023.
Vicente Vegano
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